/Conversando com os demônios

Jorge Forbes

Artigo publicado na revista WELCOME Congonhas, outubro de 2008 – ano 2 – número 19

Mais rápido que o sarampo, a rubéola, a catapora, ou qualquer outra doença infecciosa, o vírus da desconfiança se espalhou entre todos os continentes, de forma implacável, não respeitando nenhum tipo de atestado de vacina. Se alguém ainda tinha dúvida do que é o conceito de epidemia – que ganha força entre os cientistas das humanidades – acabou de ter um exemplo primoroso com a crise econômica que assolou o mundo. Belo exemplo do que é a globalização, e de como se dão as mudanças nesses tempos, em uma velocidade estonteante, e que penetram por qualquer fresta, a partir de um tipping point, ou seja, de um ponto que, uma vez atingido, a mudança se precipita inexoravelmente.
Freud dizia que se convocarmos os demônios dos infernos devemos aproveitar para conversar com eles, antes que voltem às suas profundezas e nos esqueçamos de suas existências, em nossa comodidade cega. Falemos com eles.

A nível individual, esta crise gera uma depressão ansiosa. Deprime, pelo que a pessoa perde; angustia, pela imprevisão do futuro, pela desesperança. O ser humano tem duas bússolas fundamentais: o sexo e o poder, quando um dos dois pólos (na verdade duas faces do mesmo) fica desbalanceado, dá-se o mal estar. Essa crise econômica quebrou a agulha da bússola, o mundo ficou biruta. Será que o conserto será uma ortopedia, com o conseqüente retorno ao que era, ou será uma cirurgia renovadora, uma mudança de paradigma? Aos que não ficarem completamente imobilizados por sua repentina e difícil situação existe uma chance de se tratarem e o melhor que pode lhes ocorrer é descobrir que o sistema fálico, leia-se, aquele espelhado no poder econômico da acumulação de dinheiro, baseado da disputa matreira, não é a única possibilidade de orientação na vida. E mais, que alguém até mesmo será melhor negociante se sua identidade não tiver dependente do jogo de perde ou ganha.

Do ponto de vista do pacto social, é chegada a hora – estampada nessa crise – de reconhecer a pouca flexibilidade e os limites criativos de um sistema econômico ainda fortemente marcado pelos valores da era do mundo industrial da qual nos despedimos. Uma epidemia, na globalização, diferentemente da crise de 29, por exemplo, não tem um centro, não tem um responsável encarnado. Sua cura não se dará da forma que tratávamos nossas moléstias da era anterior, em uma suposta recuperação do prestígio de tal ou qual agente social, pessoa ou instituição. Em um mundo globalizado, estruturado em redes, o centro está em toda parte e o que se espera é que sejamos sensíveis ao cálculo coletivo, e não a gurus ou bispos de ocasião, se quisermos influir no que nos ocorre e possamos melhor conversar com os demônios. A responsabilidade é de todos.