/Emprestando Conseqüência – quando Freud não explica

Há duas clínicas no ensino de Jacques Lacan. A primeira, do significante, baseia-se na estrutura do inconsciente como linguagem. A segunda, a clínica do gozo ou da identificação ao sintoma, trata dos fenômenos que ultrapassam a captura da singularidade do sujeito pela palavra. Esse debate, travado na Associação Mundial de Psicanálise, é importante por dois motivos. Por um lado, coloca em relevo um Lacan do significante em contraste a um outro Lacan, mais além da palavra em associação livre. Por outro lado, é conveniente para percebermos que a primeira clínica é coerente e adequada ao sujeito da era industrial, aquele marcado pelas identificações verticais (pai, pátria, moeda, fronteiras), enquanto a segunda clínica prepara o terreno para o tratamento dos novos sintomas do sujeito da era da globalização, que sofre um desvario do gozo, decorrente da quebra dos ideais.

É, portanto, um tema novo, atual e complexo. Pode ser abordado por diversos aspectos. Proponho pensar que, se na primeira clínica o analista empresta sentido ao que diz o analisando, na segunda o que ele faz é emprestar conseqüência ao que é dito. No emprestar sentido, cada fala do analisando remete a outra, e mais outra, e assim por diante. Se, por um lado, isso tem um efeito revelador bastante conhecido, por outro pode dar a impressão, à pessoa, de que o que ela diz não tem muita importância ou conseqüência – como quero destacar – pois ela espera que o importante ainda não foi dito. Encontramos exemplos de falas bem duras, de julgamentos pesados, que contam com esse efeito derrisório, como se o que valesse mesmo fosse o que ainda estivesse por vir, algo ainda não falado. No emprestar conseqüência, o analista não espera nada além do dito.

Para ilustrar, transcrevo algumas intervenções atribuídas a Lacan.

Paciente:
— Oh, como eu sou burro!
Lacan:
— Não é porque o senhor o diz que não seja verdade (1).

Ou ainda:

— O senhor deve se dar conta de que, se pensa que os outros pensam que o senhor pensa mal, isso talvez se deva simplesmente ao fato de o senhor pensar mal.

Outro caso:

— O senhor talvez imagine que não sou tão inteligente quanto o senhor — fala o paciente.
— Quem lhe diz o contrário?

Sempre na mesma linha:

O paciente chega, deita e, passados alguns instantes, comenta:
— Não tenho nada a dizer…
Reposta :
— Ah, isso acontece! Até amanhã, caro.

Em todas essas passagens da clínica destacamos o mesmo elemento: a conseqüência do que se diz.

A primeira e a segunda clínicas

Na primeira clínica, falamos em sujeito do inconsciente, aquele que se revela na associação livre, enquanto, na segunda, nomeamos, com Lacan, esse sujeito de parlêtre (falasser). A diferença importante a ser notada é que no sujeito do inconsciente a palavra não toca o ser, não é essencial, ficando no nível ficcional. No parlêtre, palavra inventada para apontar a junção entre palavra e ser, a palavra do analisando passa a ter a possibilidade de ancorar o ser, de fixá-lo, de fazer uma fixação do gozo – e não uma ficção –, tal como aponta Lacan em seu texto L’Étourdit:

Recorrer ao nãotodo, ao pelomenosum, quer dizer, aos impasses da lógica, é, por mostrar como escapar das ficções da Mundanidade, fazer uma outra fixação do real: isto é, do impossível que o fixa pela estrutura da linguagem. Também é traçar o caminho por onde, em cada discurso, depara-se com o real com o qual ele se envolve e despachar os mitos com os quais ele ordinariamente se supre (2).

Na segunda clínica, o objetivo não é revelar, compreender o inconsciente, mas chegar a um ponto de esvaziamento das significações do que é dito, visando fazer do significante desprovido de sentido uma letra que possa inventar, em vez de repetir histórias. Era a esperança de Lacan de fazer surgir numa análise um significante novo, que pudesse, “como o Real, não ter nenhum tipo de sentido” (3).
O conceito de cadeia significante leva a pensar a clínica como um exercício de diálogo. Foi para Lacan necessário, no início de seu ensino, diferenciar a palavra plena da palavra vazia – questão depois retrabalhada no debate entre o verdadeiro e o falso. A isso se contrapõe, na segunda clínica, o monólogo. O monólogo do blá-blá-blá, o monólogo de “todos deliramos”, o monólogo do desabonamento do inconsciente que Lacan detectou em Joyce e utilizou para ilustrar o que pode ocorrer no final de uma análise. A questão, nesse nível, sai da discussão da verdade e entra na da certeza, da evidência, que independe da verdade para existir.
A palavra interpretação deve ser utilizada na primeira clínica, enquanto, na segunda clínica, falamos em ato do analista, apresentado na corporificação de seu gesto. A interpretação abre a novos sentidos; o gesto aponta o limite, o basta, o “tu és isto”.

A interpretação, o sentido a mais, leva ao saber; o ato, o gesto, leva à responsabilidade. É interessante deduzir que o saber irresponsabiliza de certo modo o sujeito, como o “saber” que uma tosse é causada por um vírus alivia o paciente. Ouvimos, com freqüência, em resposta a críticas:

— Ah! só se for inconsciente!

Essa frase pressupõe um saber inconsciente aliviador da responsabilidade do sujeito. Há um momento da análise, ou ao menos deveria haver, em que não é possível relacionar um determinado sintoma a nenhum saber inconsciente. A isso me referi, há pouco, como desabonamento do inconsciente. A alternativa do analisando é responsabilizar-se por esse sintoma, dizer: ele, o sintoma, sou eu. Por isso falamos em identificação ao sintoma, no final da análise.
As diferenças entre a primeira e a segunda clínica recobrem as diferenças entre o sujeito industrial e o sujeito da comunicação. O sujeito industrial é um sujeito de um mundo edípico, isto é, de um mundo que responde a orientações verticais bem-definidas, com significações hierarquizadas e ideais bem-marcados. Nesse mundo, o pai é relevante na ordem familiar, como os modelos hierárquicos de gestão de Taylor ou de Ford foram predominantes na ordem industrial. Não é o que ocorre no mundo pós-industrial, que, arriscaríamos dizer, equivale a uma organização pós-edípica. Daí termos colocado na segunda clínica o habitante deste novo mundo, o sujeito da comunicação.
Finalmente, na mesma orientação, contrapomos o “emprestar sentido” ao “emprestar conseqüência”. O termo emprestar é inspirado em Lacan, quando, ao final de Televisão, ele diz que a “interpretação precisa ser presta para prestar ao entrepréstimo” (4). Passo a exemplificar.

Emprestando conseqüência: dois casos clínicos

Escolhi dois casos clínicos, um de neurose, outro de psicose, a título de exemplo do que proponho como “emprestar conseqüência”. Apresento dois recortes para abordar o essencial do tema. Veremos que, embora a intervenção analítica seja muito diferente em um e outro caso, o interesse é o mesmo: levar o analisando, da associação interminável da cadeia, até um ponto de fixação.

Neurose
Selecionei o caso de um paciente (vamos chamá-lo de José), que fica muito sensibilizado ao assistir a um filme e faz, desse momento até a sessão do dia seguinte, uma crucial interpretação de sua vida e é surpreendido com a falta de solidariedade do analista.

Terminada a sessão de cinema, José está lívido. Aquela era a sua história (a do filme Forrest Gump). Que imenso esforço, pensou ele, lhe tinha sido até então imposto para ultrapassar suas deficiências, anunciadas como tais pelos outros! Na casa da família, em seu pequeno país natal, na América do Sul, o bom sempre estava em outro lugar: no Brasil, em São Paulo, mais precisamente na Universidade de São Paulo. Não havia encontro de família, almoço ou jantar que não lhe dissessem, quando alguém se queixava do confronto com uma situação difícil:

  • — Ah, para resolver isso, só fazendo um curso na USP.

E a USP era tão distante, para José… Se ele era tolo como diziam, como pretender ir à USP? E, não indo, como suportar as dificuldades? Não tinha jeito. A USP era coisa para um de seus dois brilhantes irmãos. A ele sobrava talvez a sorte.
E no entanto, paradoxo do destino, José conseguiu ir para a USP. Com sucesso.
Na saída do cinema, ele tentou disfarçar as lágrimas, de raiva pelo esforço sofrido em nome de um ideal e de pena, por autocomiseração.
A hora tardia do final da sessão, meia-noite, não o impediu de querer revisitar cada instituto, cada sala freqüentada naqueles últimos anos. Ele já fazia planos para, no dia seguinte, contar ao analista sua grande descoberta: os motivos de seu sofrimento. Queria ir às últimas conseqüências, sentir tudo o que devia sentir, deixar-se invadir pelas memórias afetivas daqueles lugares, às vezes calvários de castigo, às vezes de redenção, sempre religiosos.
Seria difícil entrar no departamento de Filosofia tão tarde da noite, mas a porta aberta amavelmente por um professor notívago, que se retirava, facilitou a empresa. De cada carteira, de cada corredor emanavam as angústias de estar aquém do ideal. José tinha chegado à USP, mas será que a USP era mesmo lá?
Do departamento de Filosofia, ele foi ao de Antropologia, em seqüência ao de Sociologia, ao de História… A cada passo, mais clara lhe aparecia sua vida, seu percurso. De certa maneira, José não se deparava com um saber tão novo, mas nova era a forte convicção da verdade desses fatos. Freud não dizia que o obsessivo recalca o afeto mas não as idéias, diferente da histérica, que recalca os dois?
Enfim, fatigado, extenuado, mas feliz pela boa descoberta, ele foi dormir. Na manhã seguinte, cedo, verificou se não havia se esquecido de nada, para relatar ao analista. Quanta expectativa! Chegada a hora, entrou e imediatamente contou sua noite. Em todos os detalhes. Ao fazê-lo, começou a notar que não era escutado com o interesse que aguardava.
“Será que não estou sendo claro?”, perguntou-se, e buscou reforçar a importância do que dizia.

O analista, terminado o relato, sem nada falar, levanta-se, pondo fim à sessão e lhe dando um novo horário para dali a algumas horas. No elevador, entre a sideração, a raiva e a frustração, José se perguntou o que seria aquilo.
Horas depois, retornando à sessão, precavido, não querendo ser de novo surpreendido, começou por perguntar, de maneira bem objetiva, se a sessão anterior tinha sido encerrada porque o analista pensava que assim devia fazer ou porque a sala de espera estava cheia. O analista, laconicamente, responde-lhe:

  • — Porque entendi que deveria interromper.

José tenta então explicar o absurdo sofrido, voltando sobre sua história, agora não mais emocionado mas à maneira de um advogado que exige justiça à dor de seu cliente. E assim, em poucos minutos, energicamente, retomou e pôs em ordem os pontos capitais de sua reflexão noturna. Recebeu então nova resposta do analista, uma interpretação:
— Pois é, você arriscava acreditar excessivamente nisso tudo(5).

A intervenção “Pois é, você arriscava acreditar excessivamente nisso tudo” esvaziou a significação à qual o analisando se prendia, sua ficção, ao mesmo tempo que quase o impediu, ou o desanimou, de buscar uma nova significação. Afinal, ele se convenceu suficientemente de que nenhuma história poderia lhe cair melhor do que aquela, recém-esvaziada.
Esse é um momento muito sensível e fundamental de uma análise, e que normalmente se associa ao parar de se queixar, exigindo responsabilidade, conseqüência, ao analisando. Não há nenhuma história ou saber que explique o sofrimento de alguém a não ser seu próprio existir.

Psicose

Como segundo e último exemplo, transcrevo um pequeno momento clínico que nomeei “Paranóia”. Nele, de modo diverso ao anterior, o analista, contrariando o bom senso, faz o elogio do sintoma do paciente, transformando-o no próprio enigma, promovendo uma conseqüência responsável.

Raul estava muito mal. Tinha brigado com pai e mãe, pois entendia não ter recebido atenção e carinho suficientes. O irmão mais velho, com quem por um tempo dividiu uma academia de futebol – a paixão pelo esporte era mania familiar – era agora considerado um escroque enganador. Ele preferia ver o diabo a encontrar, mesmo que por acaso, esse irmão.
No início do ano, havia se mudado para Ribeirão Pires, contratado pela irmã para gerenciar uma escola maternal de propriedade dela. Passados dois meses de relativa paz, tudo explodiu. Raul convenceu-se de que a irmã o maltratava e quase entrou na justiça com um processo trabalhista contra ela e o marido. Não namorava há bastante tempo e seus trinta e cinco anos eram vazios e inúteis.
Foi um amigo da família que pediu ao analista para atendê-lo, com urgência. Contou-lhe, em tom quase ameaçador, que Raul já tinha feito um périplo cansativo por profissionais da área, de diversas orientações, sem melhor resultado do que a criação de novos inimigos.
O analista topou a parada. Chegado o dia e a hora, lá estava Raul. Sorriso simpático e desconfiado, cumprimento firme e disposição olímpica para relatar seus infortúnios. O analista ouviu com bastante atenção e interesse as minúcias de seus desencontros, que ele contava sem esconder detalhes. Quando percebeu que podia falar, transmitiu-lhe seu assombro:

— Mas você é formidável!

— Como? — perguntou Raul, com os olhos esbugalhados. — Como posso ser formidável?

— Uma pessoa que consegue, aos trinta e poucos anos, estar brigado com o pai e a mãe, não cumprimenta o irmão, processa a irmã, não tem namorada, nem um amigo, nem emprego, nem dinheiro, nem casa, nem comida, é um grande realizador. É difícil alguém conseguir tamanho insucesso em todas as áreas do relacionamento e do trabalho – respondeu o analista. — E reiterou: — Você é o máximo.

O analista teve, por um segundo, a impressão de que Raul estava prestes a se levantar e ir embora, pensando ter encontrado um louco em franco desvario. Mas não. Ele ficou. E balbuciando, pensativo, entre o riso e a preocupação, disse-lhe:

— É muito esquisito, mas você pode ter razão. Eu nunca tinha pensado que era tamanha desgraça.

— É que não é fácil atingir tal insucesso — acrescentou o analista.

Pediu-lhe, então, que contasse, passo a passo, os segredos de seu infortúnio. Ao contrário de um livro de auto-ajuda, era como se estivesse pedindo a Raul seu diário da autodestruição. O interesse que o analista demonstrava em conhecer seu método de vida era tão grande que Raul não se sentiu à vontade para frustrar seu vigoroso ouvinte. Nos encontros posteriores, tal como solicitado, um pouquinho precavido das intenções, iniciou um relato pormenorizado de como tinha construído seu infortúnio radical. O analista intervinha aqui e ali, nas passagens pouco claras ou contraditórias, com o objetivo de evidenciar a lógica do insucesso absoluto.

Não demorou muito, na medida em que ditava esse livro falado, para que Raul se desinteressasse, gradativamente, de seu personagem complicado e cansativo. Um dia, ao chegar, contou ter arrendado um sítio, sempre em Ribeirão Pires, e começado uma criação de coelhos.

O desinteresse pelo insucesso foi se somando à falta de vontade de continuar indo aos encontros. Com relativa educação, Raul deixava escapar, vez ou outra, que achava um pouco esquisito falar para alguém que, ao contrário dos outros, não o obrigava a ser uma pessoa normal, nem o chamava de maluco. Ao contrário, admirava seu eficiente método produtor de desgraça. Chegou o tempo, ele foi embora.

Recentemente, o analista encontrou a pessoa que lhe havia enviado o paciente. Esta contou-lhe que Raul estava ótimo, só não sabendo se havia ou não feito um tratamento. Mas que sua vida agora era outra, lá isso era. Tinha até descoberto um grande amor! Intrigado, o amigo da família perguntou:

— Que raios você fez com ele?

— Nada, além de emprestar conseqüência ao que me dizia (5).

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  • (1)Esta e as três citações seguintes foram retiradas de: Allouch, Jean. Allô, Lacan? Certainement pas. Paris: E.P.E.L., 1998.
  • (2) Lacan, Jacques. “L’Étourdit”. Scilicet no 4. Paris: Seuil, 1973. p. 35.
  • (3) Lacan, Jacques. “Le Séminaire de Jacques Lacan” (texto estabelecido por J.-A. Miller). Ornicar? no 17/18. Paris: Seuil, 1979. p. 21
  • (4) Lacan, Jacques. Télévision. Paris: Seuil, 1974. p. 72.
  • (5) Forbes, Jorge. “Ridículas palavras recalcadas”. Opção Lacaniana no 16. São Paulo: Eólia, ago. 1996. pp. 43 a 46. (Em francês, “Ridicules paroles refoulées”. La Cause Freudienne. Revue de Psychanalyse no 34. Paris: 1996. pp. 38 a 42.
  • (6) Forbes, Jorge. “Paranóia”. Revista Viver Psicologia no 82. São Paulo: Segmento, 1999. p. 19.
  • (texto do livro “Você quer o que deseja?”, de Jorge Forbes – a primeira versão foi de 1990).