/As Quatro Posições Subjetivas na Produção do Saber Psicanalítico

Jorge Forbes

I

O saber psicanalítico implica o sujeito. Nem todos os conhecimentos são assim, justificando, para uma certa tendência de teóricos, a defesa de um saber sem sujeito ou dele descompromissado. É o que alguns gostariam de chamar: “saber científico”, aquele que seria independente das subjetividades do emissor e do receptor. Não me estenderei aqui sobre minhas dúvidas quanto a esta pretensão, restrinjo-me a dizer que não é o caso da psicanálise, por isto Lacan pôde escrever no prólogo de seus Escritos, que estes só podem ser lidos, por aqueles que “aí ponham de si” (1). Esta frase fala da implicação do emissor e do receptor na transmissão do saber psicanalítico, levando a entender que a psicanálise não se transmite sem transferência, ou seja, sem a pessoa colocar no que lê, escreve, diz ou faz, algo de si.
Em decorrência desta implicação pessoal, além da dificuldade inerente à própria matéria, trabalhar com o saber psicanalítico apresente este problema suplementar: a pessoa. Parece ser conflitante, com freqüência, escrever um texto, expô-lo, publicá-lo, etc. Imediatamente surgem questões do gênero: “Será que está bom?… que vão gostar?…  que eu disse tudo?… que não está superficial?… que está claro?…” E tantas mais, todas revelando a dimensão do reconhecimento, do “como se é visto pelo outro”. Comenta-se por vezes o “ narcisismo dos intelectuais”, exacerbado por ocasião de Encontros ou Congressos quando competem pelo melhor microfone, hotel, recepção, e tudo o que possa simbolizar prestígio. Respeitadas as proporções e o tema, essas disputas guardam semelhança com as brigas familiares nas datas ditas festivas: Natal, aniversários, dia dos pais, das mães, das crianças, enfim quando surge a ocasião de testar como se é visto pelo outro, ou como se vê o outro. Será que existe festa familiar, Natal, por exemplo, sem discussão, sem alguém achar que recebeu menos que o outro, ou que deu mais que recebeu.
Às vezes o presente é pequeno demais para a importância do presenteado, outras o presente é que é muito grande e o presenteado fica constrangido. E que dificuldade, que impossibilidade no exercício da justiça distributiva ! Por tudo isso, aplausos ou vaias, não são medidas de um trabalho teórico, nem de um aniversariante. Deve haver outras modalidades para aferir o “ por de si”.

II

Proponho quatro posições possíveis ao sujeito na produção do saber analítico.
Antes de nomeá-las, buscarei nos artistas, na pintura, inspiração esclarecedora.
Existem pintores que se notabilizam por criarem uma nova forma de ver o mundo. Antes de Volpi uma bandeirinha era só uma bandeirinha de São João, depois dele, é jogo de cores da terra brasileira, é telhado de casa do interior em quarenta e cinco graus, é varal de roupas comuns… Cézanne, por seu lado, mantendo a beleza dos impressionistas, explode as proporções em suas naturezas mortas e nas montanhas de Santa Vitória. Picasso põe um filtro de cubos em nosso olhar, mostra quantas partes pode ter uma imagem. Há pintores assim, que iniciam uma nova forma de ver; outros, sem por isto serem melhores ou piores, retomam o mesmo ponto de vista à sua maneira. Encontramos Cézanne em Pancetti e em Bonadei; Picasso em Portinari; Chagall nas formas soltas de alguns Ismael Nerys, assim por diante.
Temos ainda na pintura os críticos, muitas vezes também pintores, e os imitadores: ou de quadros consagrados, ou da obviedade da natureza – o quadro do lago tranqüilo, o da floresta pujante, o do mar revolto. Pintores que na obra, nada põe, de si, sem particularidades, idênticos, portanto “idiotas” (palavra que tem “idem” na sua raiz).
Posso agora, comparativamente, nomear as quatro posições que me parecem possíveis ao sujeito, na produção do saber analítico:
a) “autor conceitual ou nocional”, semelhante ao pintor que cria uma nova forma de ver;
b) “autor comentador”, parecido ao pintor que retoma uma forma de ver;
c) “Crítico”, como crítico de arte, e
d) “Idiota”, aquele que não conseguindo por de si, aliena-se no outro.
O sujeito varia de lugar, não ocupa exclusivamente uma dessas posições.
Tomemos Freud como exemplo. Em vários momentos vamos percebê-lo criando conceitos ou noções: a  transferência, a repetição, o inconsciente, a pulsão, etc; em outros, está comentando autores, biologistas,  antropólogos. Também são freqüentes os instantes em que toma uma certa distância de sua própria teoria para criticá-la, para fazer uma metapsicologia; é o Freud crítico. Resta a quarta posição, a do idiota: os gênios estariam excluídos dela? Claro que não, mas saberiam tirar melhor proveito.
O que caracteriza o idiota é o não por de si. Como já comentado, o se alienar a um outro, a um ideal. Chamando de “besteiras”, conforme Lacan aborda no “Encore”, o que cada um traz em si e necessita dar um endereçamento – só besteiras não têm lugar marcado nesse mundo – quando estas besteiras são tratadas por um ideal, geram um idiota, quando tratadas por uma causa, muito diferente de um ideal, geram um artista, um autor, um analisante, um analista, diferentes expressões dos efeitos do tratamento das besteiras por uma causa.
Voltando à classificação, é interessante notar que a força do comentário de uma pessoa em um dado momento, na posição de autor comentador, pode ser tanta, que seu comentário fica impregnado sobre as próprias criações do autor conceitual; assim se passa, podemos notar, com muitos dos comentários lacanianos sobre Freud que, por injetares tal vigor, por fazerem tamanha revelação do texto freudiano, fica quase impossível, daí em diante, ler Freud sem Lacan. Aí está um belo exemplo da frase: “só se pode ir além do pai com a condição de saber servir-se dele”.

III

Como favorecer a transmissão da psicanálise minorizando o efeito da idiotia e privilegiando a causa? Com o cartel, respondeu Lacan. Um pequeno grupo de pesquisa onde o lugar do ideal nada mais é que miragem do desejo de cada um de seus constituintes. O modelo veio das experiências da psiquiatria inglesa durante a guerra que colaborou na construção de um exército vencedor a partir de um “agregado de irredutíveis” (2).
De um lado, o alemão, todos os símbolos ideais estavam estampados: a suástica, a águia, a apresentação dos soldados lembrando as legiões romanas, a arquitetura moralista e opressiva; do outro, o inglês, destacava-se um senhor gordo, com um charuto na boca, dizendo: “só lhes posso prometer sangue, trabalho, suor e lágrimas”.
Lacan visitou Londres, por todo o mês de setembro de 1945, “quando brilhavam ainda os jogos comemorativos do dia: “V-Day” (3). Quis sair de uma França presa em um “encantamento deletério” (4) para encontrar uma “relação verídica ao real” (5), do outro lado do Canal da Mancha.
Ficou impressionado com a possibilidade de recrutamento de oficiais para a guerra de uma maneira diferente, até contrária à habitual, através dos chamados “grupos sem chefe” (6), realizados por Bion e Rickmann, onde a única pega que resta ao psicanalista é a “de manter o grupo ao alcance do verbo” (7). Não se tratava de hipnotizar pessoas com gritos de guerra unificadores, tipo “a união faz a força”, mas de preservar uma relação verídica ao real e para tanto era necessário manter vivo para cada um o “alcance ao verbo”, o contrato com a palavra, mesmo na pior circunstância, face ao desespero.
Nas experiências da psiquiatria inglesa, Lacan encontrou os ingredientes e a receita da produção de um saber que, como o da psicanálise, buscava respostas ao mal estar na civilização.
O objetivo era semelhante naquela época e continua a sê-lo hoje: estabelecer uma relação verídica com o real. A maneira, também: manter a relação com a palavra. O inimigo comum: todas as formas de totalitarismo que visem extinguir as particularidades do desejo, em nome de um ideal soberano, aplastrador. Os agentes, “um agregado de irredutíveis”, comparável a um agregado de analistas, de pessoas que em suas análises experimentaram a irredutibilidade do desejo a qualquer roupagem pré-fabricada, a qualquer demanda pré-estabelecida.
Lacan aprendeu dos psiquiatras ingleses a técnica dos grupos sem chefe, grupos com o “mais um”, como mais tarde ele viria a chamar, ao propor os cartéis, na base do engajamento na sua Escola.

IV

Para concluir, uma breve reflexão sobre a prática dos cartéis na Escola Brasileira de Psicanálise, em especial sobre a função do “mais um”.
A impressão que se tem é que o medo é tão grande de se recair no chefe, no professor, que os “mais uns” chegam a pensar que quanto mais apagados melhor.
Há mesmo cartéis que se reúnem sem a presença do “mais um”, a quem só se visita de quando em vez, como a uma velha tia, para contar como vão indo as coisas. É uma forma peculiar do entendimento da tarefa proposta por Lacan: “encarregar-se da seleção, da discussão e da solução a reservar ao trabalho de cada um” (8).
O fato do trabalho ser de “cada um” não é contraditório à seleção, à discussão e ao encaminhamento. Todo trabalho passa por diversas formas de aprimoramento antes de sua conclusão e é necessário discernir esses tempos para que não se perca a “causa” e se caia no engodo da muleta falsamente segura do “ideal”. Quando não se pode “por de si”, segura-se no braço do outro mais forte. O preço, como dito, é a idiotia.
No futebol, um reserva talentoso pode ser queimado se posto no time principal, na fogueira de uma decisão. Na guerra, lembra Lacan, “um excelente sub-oficial, fracassado como oficial aspirante, retorna a seu corpo no estado de mau sub-oficial”(9). E na psicanálise, será que certos sinais de alienação como, por exemplo, falar em linguagem cifrada, o lacanês; não conseguir associar a teoria com a clínica; entrar em pânico com o estudo, etc, não poderiam ser minorados por um bom trabalho de cartel e um eficiente “mais um”?
Um dia deixamos de temer a palavra “dirigir” associada à clínica, por termos aprendido que “dirigir a análise não é dirigir o paciente”. Hoje, junto com a mudança da ética necessária à passagem do grupo de estudo ao cartel, do ideal à causa, há que se aprender a não temer a função do “mais um”.
E os cartéis, contrários à idiotia, poderão promover autores e críticos da psicanálise marcados por sua subjetividade. Ao menos, foi no que apostou Lacan.

Bibliografia

1. Lacan, J., Escritos, Editions du Seul, Paris, 1966, p.10.
2. Lacan, J., A psiquiatria inglesa e a guerra, in A Querela dos Diagnósticos, Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1989, p.16.
3. Ibidem, p.11.
4. Ibidem, p.11.
5. Ibidem, p.11.
6. Ibidem, p.21.
7. Ibidem, p.17.
8. Lacan, J., Ato de Fundação, in Anuário da Escola Brasileira de Psicanálise, S. Paulo, 1995, p.83.
9. Lacan, J., A psiquiatria inglesa e a guerra, op. cit., p.20.

(1996)