/A Ciência pede análise

Jorge Forbes

 

Estamos em um tempo de novas subjetividades. De um mundo que organizava seu laço social verticalmente – donde a aplicação e a importância na psicanálise do complexo de Édipo, uma estrutura também vertical – estamos passando para um mundo horizontalmente orientado, além do Édipo, que nos exige reformulações teóricas e clínicas radicais. Esse mundo, que assusta os que viviam no conforto da era anterior, vê tentativas desesperadoras de um suposto retorno ao passado, através de falsas garantias de neo-religiões, de livros de autoajuda e de messianismos técnico-científicos.

Não me incluo, entretanto, em uma corrente de psicanalistas que demonizam os cientistas alertando, com cara sisuda e de conteúdo, que devemos nos precaver contra os terríveis perigos que representam os avanços das pesquisas científicas, para uma vida qualificada. Não me parece sustentável afirmar que as pesquisas científicas, especialmente em Genética, são as grandes responsáveis pelas tentativas atuais de contabilizar o humano e dos absurdos ciframentos existenciais. Reconheço que essa ideologia está sobejamente presente em nossos dias, especialmente em um novo tipo de imprensa marrom, que transforma cada avanço genético em um degrau do paraíso. Desse mal, sofremos os psicanalistas, mas os cientistas sérios, também.

Em um de meus doutoramentos, no caso, exatamente em Ciências, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, tive a ocasião de estudar não o que dizem sobre os cientistas, mas o que eles próprios dizem de suas descobertas.

Craig Venter, por exemplo, o primeiro a decodificar o genoma humano, afirma, em entrevista no dia 13 de abril de 2008, ao jornal O Estado de São Paulo: “Sim, os seres humanos são animais altamente influenciáveis pela genética, mas são também a espécie mais plástica do planeta em sua capacidade de se adaptar ao ambiente. Há influências genéticas, sim, mas acredito que as pessoas são responsáveis por seu comportamento”.

Christian de Duve, biólogo belga, Prêmio Nobel de Fisiologia/Medicina, em 1974, escreve em seu livro de 2009, Genética do Pecado Original, que a transmissão não é feita só pelo DNA: “É importante notar que a rejeição do lamarckismo concerne unicamente à hereditariedade transmitida pelo DNA. Os últimos anos viram a descoberta de muitas outras formas de hereditariedade suscetíveis de uma explicação lamarckiana.”

Na mesma orientação, encontramos o eminente biólogo britânico, Denis Noble, opositor das teses reducionistas de seu conterrâneo Richard Dawkins. Para Noble, “os genes não podem ser tomados isoladamente, mas como integrantes de um sistema múltiplo, como na gaita de foles”. Em seu livro de 2006, A Música da Vida, ele também põe em suspensão a dicotomia maniqueísta: Darwin x Lamarck – “É uma ideia consagrada que Darwin e Lamarck se opuseram sobre os mecanismos da hereditariedade. A verdade é que nem um nem outro, tinham a menor ideia desses mecanismos.” (p.164).

Por seu lado, a cientista brasileira Mayana Zatz, titular de Genética da Universidade de São Paulo, afirma que a facilidade em se obter o genoma pessoal, a cada esquina, está perto de ser verdade, o que ocasionará, em vez de certezas, um possível congestionamento nos consultórios dos psicanalistas, dada a imensa ansiedade que será gerada pela massa de informação sem sentido definido.

Não nos cabe a cruzada anticientífica. A incompletude humana não necessita de defensores, ela se impõe por si só e cabe aos analistas saberem estar no seu tempo, recolhendo os efeitos das novas sombras criadas pela forte luz dos avanços científicos. O que melhor para isso senão a clínica do Real, de Jacques Lacan?

Nessa vertente, e há seis anos dirigindo uma clínica de psicanálise, no mais influente centro de pesquisas genéticas da América Latina, passo a dividir com vocês algumas questões sobre as novas subjetividades, que põem em cheque todas as respostas anteriores, jurídicas, éticas, médicas e similares. Contarei dois casos, omitindo propositalmente a conduta que adotamos em cada um, para que vocês melhor participem dessas decisões difíceis e atuais. Extraio esses exemplos de minha prática na Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano da USP. Esses casos foram relatados de forma diversa, pela já citada Mayana Zatz, em livro recente: genÉTICA. São situações nas quais a Ciência pede Análise.

Uma jovem índia, grávida de seu terceiro filho, influenciada por uma assistente social, consegue fazer um exame pré-natal, para detectar a possibilidade do feto ser portador de um gene que causa distrofia muscular progressiva. Como a moça já tinha tido dois filhos, que manifestaram a doença depois dos três anos de idade, as autoridades da tribo, cacique e pajé, queriam sacrificar a criança ao nascer, para evitar possíveis problemas futuros. A assistente social esperava que o teste dando negativo, a criança seria poupada. Não levou em conta o caso contrário, os 25% de possibilidade de dar positivo. O que fazer com o resultado positivo: contar para a família, sabendo que o bebê será morto ao nascer? Não contar e fugir à obrigação de revelar o resultado? Disseram os juristas consultados que as duas posições eram passíveis de processo. Fato, aliás, que mostra a necessidade da revisão de nossas leis, obsoletas frente às novas questões colocadas pela ciência. O psicanalista é consultado: – O que vocês fariam?

Outro exemplo. João e Maria trazem Pedro, de quatro anos, para confirmar o diagnóstico de uma grave doença neuromuscular que os aflige e também querem saber o risco de terem mais filhos com o mesmo problema. João especialmente se martiriza, pois, quando herdada, trata-se de uma mutação transmitida pelo pai. O exame confirma a doença, mas, ao mesmo tempo, mostra que João não é o pai da criança. Mais uma questão aos juristas e a todos. De novo o psicanalista é consultado: – O que vocês fariam? Como havia comentado, os resultados genéticos mais inquietam que determinam a justa conduta. Aproveito para informar – o que não é sem importância para psicanalistas – que foi constatado que o pai biológico é outro, em 10% dos casos estudados. A Inglaterra apresenta a mesma porcentagem.

Em âmbito diferente, mas em igual vertente lógica, fomos convidados a participar da audiência de esclarecimento que o Supremo Tribunal Federal brasileiro promoveu para se preparar, não faz muito tempo, ao voto da legalidade das pesquisas com células tronco embrionárias. A questão básica era a de quando começa a vida, pergunta cuja resposta ultrapassa os domínios da biologia e da ciência em geral. Os biólogos e os juízes entenderam ser importante incluir a psicanálise de orientação lacaniana, na opinião e no debate.

São essas as razões aqui apenas esboçadas, caros colegas, que me levam a entender que o psicanalista de hoje deve se preparar para responder à crescente demanda de análise originada das novas subjetividades produzidas, em uma época de supremacia do Real.