/Referência de peso – Gustavo Klein entrevista Jorge Forbes para a Revista A Tribuna

A Tribuna – ano 3 – edição 115 – 11/fev/2007

Dono de posições polêmicas e referência em análise lacaniana no Brasil, o psiquiatra Jorge Forbes, nascido em Santos, tem dedicado sua trajetória profissional tanto ao estudo de fenômenos de comportamento ligados aos jovens (como as festas rave e os esportes radicais) quanto à analise dos efeitos que a globalização impõe no mundo moderno. Na entrevista a seguir, Forbes fala de todos esses assuntos e analisa, inclusive, casos como o de Suzanne Von Richtoffen.

Um de seus principais estudos tem o jovem como protagonista. A que aspectos ele se refere? 
Há mais de 10 anos eu pesquiso os efeitos que a globalização traz na identidade, no laço social, no amor, no trabalho, na família etc. Em uma dessas pesquisas, fiz uma análise do jovem atual, das festas de música eletrônica conhecidas como raves e dos esportes radicais. Não acho que eles sejam fenômenos passageiros ou moda e me espanta muito que grandes especialistas, daqueles que adoram discutir a tal juventude em crise, nunca tenham ouvido falar nelas ou tentado estudá-las. Algumas festas rave agregam 2 milhões de pessoas, o que me fez pensar o que pode unir tanta gente em torno de uma música sem palavras e, por isso, sem bandeiras, que se diferencia pelo número de batidas.

A que conclusão chegou? 
Que essa música efetivamente agrega, é fator de união entre os jovens. Também percebi que eles não a ouvem como as gerações anteriores curtiam música, sentados em uma sala, tomando um drinque e ouvindo Nat King Cole. Eles próprios não suportam ouvir essa música nessas condições. Ela é feita para dançar, para a balada. Estas pessoas estão todas juntas, curtindo essa música, mas estão sozinhas. Eles descobriram isso: o estar junto sozinho. É uma espécie de monólogo articulado. A sociedade, então, vai ter que criar espaços para que as pessoas estarão juntas mas não necessariamente fazendo a mesma coisa ou se compreendendo mutuamente.

Os esportes radicais também são alvo de seus estudos. Qual é a explicação para que seus praticantes tenham o desejo de chegar ao limite? 
Pois é, o esporte hoje também não é o mesmo da minha época. No meu tempo era bola, frescobol, tênis, basquete, vôlei. Agora é asa delta, skate, paraglider, kite surf, canoagem, rafting. Todos eles propõem situações-limite. Cheguei à conclusão de que a sociedade de hoje não elabora a morte. Antigamente, estávamos incluídos em uma sociedade que pensava a morte, na quaresma, por exemplo. Essas coisas não existem mais nas cidades grandes, a igreja não ocupa mais o espaço de antes e a sociedade não tem outros modos de fazer a pessoa se deparar com a morte, a não ser de forma suprimida de emoção. Essa moçada está buscando formas de trabalhar esses temas, de conversar com o limite. Descobrem esse limite e, com isso, se acalmam, se localizam.

Essa falta de relação emocional com a morte é o que produz criminosos como Suzanne Von Hichtoffen, que aparentemente não expressam emoções após terem cometido crimes bárbaros?
Não adianta tentar achar uma categoria psiquiátrica para a Suzanne, dizer que ela é psicótica, histérica ou perversa. Esse tem sido o principal erro dos especialistas e também da imprensa. O desespero por explicação chega a tal ponto que explicações absurdas são tomadas como verdade, como a de uma revista semanal que garantiu que Suzanne matou os pais porque a mãe trabalhava fora e o pai era um rígido alemão.

O caso de Suzanne, aliás, está longe de ser único. É um fenômeno de que proporção?
O caso de Suzanne é muito mais comum do que sonhamos imaginar. O dela aparece por ser um caso-limite, um transbordamento, mas o fenômeno é comportamental e bastante amplo. Não faz muito tempo, fui até a delegacia acompanhar o caso de um rapaz que estava andando com a namorada na rua, passou um outro jovem e lhe deu com um soco inglês no rosto. Eles não se conheciam, nunca tinham se visto e não houve qualquer contato prévio. Nem bate-boca nem nada. Agressão gratuita, pura e simples. Ainda no Distrito, a delegada pede minha opinião sobre um outro caso que acabara de acontecer. Um garoto, conversando com a namorada pela Internet, com câmera, trocando juras de amor etc. Em certo momento, o garoto diz para a namorada que está um pouco chateado. Vira a câmera para a janela e se joga do décimo sétimo andar.

Não é o tipo de coisa que pode ser prevista? 
Não dava para prever. Não havia nenhum histórico anterior, pelo menos no sentido clássico, do modo como esse tipo de coisa era previsto antes. E os outros problemas ligados a esse fenômeno idem. As drogas, por exemplo, afetam um número muito maior de pessoas do que a imprensa tem noticiado. Por quê? Porque o tóxico é um receptor universal. Frente à angústia, ao fato de os laços de identidade estarem soltos, o tóxico responde às solturas de qualquer pessoa. Isso é um fenômeno que está ocorrendo e que vai continuar acontecendo se nós não legitimarmos os novos laços sociais. Um dos caminhos da nova psicanálise é justamente este, o de trazer um pouquinho desses novos elementos.

Ainda sobre o caso da Suzanne: se não existe um jeito de enquadrar, como entender, pelo menos? 
Não conheço as razões da Suzanne, mas, durante o julgamento, o Instituto da Psicanálise Lacaniana, que presido, promoveu dois debates. Um deles com a promotoria e outro com a defesa. O que senti é que todas as categorias para julgar a Suzanne estão velhas. Só que não há outras. É óbvio que temos que mudar esse sistema rapidamente.

Mas não é possível, então, explicar Suzanne? 
A primeira resposta que posso dar é que casos como o de Suzanne são representantes limítrofes de um novo mal estar dessa sociedade, um descompasso afetivo na falta de melhor termo. Em um primeiro momento, frente à liberdade que a globalização trouxe, ela foi muito bem vinda mas, no momento seguinte, a sociedade voltou atrás porque ficou apavorada com a falta de segurança que a ausência de padrões provoca. Não dá para dizer que a Suzanne é psicopata porque no dia seguinte ao assassinato ela promoveu um churrasco. Não dá. Ela provavelmente estranha a si própria. Acredito que a sociedade não vai conseguir se defender disso dando drogas químicas para contenção. Nem internando em camisa de força e muito menos dizendo que há possessão demoníaca. Acredito que a sociedade deve ver nesses exemplos a prova de como ela não está preparada para estas mudanças e como urge que mude o caminho que ela tomou. Porque o que, atualmente, a crença é de que é possível controlar a emoção humana.

A resposta da sociedade tem sido aumentar o controle social. É esse o caminho? 
De forma alguma, pelo contrário. Recentemente na França tivemos dois casos assim, de grande repercussão, em que pacientes recém-liberados de clínicas psiquiátricas cometeram crimes, em duas cidades diferentes, Pau e Paris. O Ministro da Saúde local anunciou uma coletiva de imprensa e, quando se esperava que ele anunciasse normas mais rígidas, ele foi contra a opinião pública e aplicou um plano de longo prazo, milionário, que daria possibilidade às pessoas de serem escutadas antes de matarem outras por não suportarem mais a angústia da existência. Foi um escândalo, porque isso ia contra toda a perspectiva. Mas se provou a estratégia certa. No lugar de reprimir, ouvir, assumindo a impossibilidade do Estado de tudo controlar. É preciso diminuir o controle e aumentar na sociedade esse lugar de escuta. Ainda é pouco frente à urgência de respostas que possam apaziguar uma preocupação social, mas é muito se pensarmos que estamos corrigindo uma rota errada.

O que falta fazer? 
Não estamos, por exemplo, lidando da forma correta com a compaixão e a indignação. No ano passado,

Que espaço a amizade terá nesta nova ordem das relações?
Parece um tema banal, a amizade, não? Mas não tem nada disso. Ela terá um papel fundamental, a amizade será o afeto mais importante desta nova era, a era da globalização. A amizade, que andava despretigiada, mal vista, desconfiada, passa a ganhar um relevo grande daqui para frente.

Você coloca a amizade neste patamar nas novas relações sociais. Mas, quando se fala de pós-modernidade, a impressão que se tem é exatamente a inversa, das pessoas se isolando cada vez mais…
Está errada. É uma idéia das pessoas de mais de 40 anos que entendem que o mundo atual está perdido, sem princípios e sem moral, quase uma Sodoma e Gomorra decadente. São as pessoas que acham que ‘precisamos voltar aos bons princípios’. Corremos um sério risco de um movimento neo-reacionário complicado. Aliás, já estamos nele, basta ver o número de bispos que nascem igual capim nas esquinas brasileiras. Essa idéia que você colocou é usual. Passou-se a promover a idéia de que na pós-modernidade, como não há um padrão de comportamento, cada um irá se virar por si, em isolamento e narcisismo muito grandes.

E não é assim? 
Mesmo Narciso precisa do outro. Mesmo se isso fosse verdade, o narcisista precisa encontrar outras pessoas. Não acho que a pós-modernidade leve à individualidade. Ela leva, sim, a uma singularidade. Leva a um homem multifacetado, complexo, pronto a diversas circunstâncias. A flexibilidade é um dos grandes termos deste momento. Como não se tem um padrão – como se tinha em outros tempos e no qual a pessoa se adequava ou não – as pessoas acabam tendo que criar e inventar sua própria vida ou se adequa àqueles que inventam a vida por ela.

Quais são as consequências disso? 
Angústia. As pessoas não sabem o que estão fazendo, se questionam. E acabam se acovardando e se tornando consumidoras de livros de auto-ajuda ou pagadoras de dízimo para bispos de Miami. Ou isso ou você suporta a angústia dessa criação da própria vida sem padrões pré-estabelecidos. Mas essa angústia da criação faz com que aquilo que você pensa e aquilo que você queira sejam sempre diferentes. É neste momento que você precisa de um amigo, aquele que pode não acabar com sua solidão, mas suportar a solidão com você. Solidão é palavra parecida com ‘solidário’. Entendo o amigo como alguém que não necessariamente sente o mundo da mesma forma, mas aceita que o amigo o sinta da forma que lhe convier. É necessário, para as pessoas não enlouquecerem, esta presença do amigo.

Estamos falando, então, de um novo tipo de laço social? 
É, sim, um novo tipo de laço social, que não necessita da compreensão para se justificar. Tanto no mundo iluminista quanto no mundo moderno, estar junto era repartir uma forma de visão, era ver o mundo de forma semelhante. Quando falamos, por exemplo, sobre os torcedores do Santos, sabemos que são aqueles que se unem em torno do brasão do time. Os funcionários do Banco do Brasil são outro exemplo. Hoje, precisamos descobrir que tipo de laço social vai servir dentro da quebra dos padrões. Agora, quando falo sobre os participantes de uma festa de música eletrônica, as raves, o que posso dizer sobre o que os une? Eles repartem uma presença, não um sentido comum.

Como assim? 
A música eletrônica não tem um sentido comum. É uma música que não necessita de compreensão. Eu ouço uma música com uma outra pessoa, danço com ela mas não reparto as mesmas palavras ou idéias. Acabou o Strangers in the night ou a discussão do ‘eu sou Beatles e você é Rolling Stones’ ou ‘eu sou Chico e você é Vandré’, que eram representações muito claras do lirismo de Paul McCartney contra a dureza de Mick Jagger ou o lirismo de Chico contra a revolta de Vandré. Não há mais, nem, a coisa do ‘você quer ser minha namorada’. Hoje, as pessoas se juntam por um certo tempo para se permitirem, umas com as outras, suportes de desejos distintos e, de repente se separam, ou de repente, prosseguem.

Não há mais a tradição dos relacionamentos que podiam ser classificados como namoro, noivado, casamento etc?
Não há mais, mesmo, a tradição. Não se fica mais junto em nome de uma tradição, até porque isso (tradição) é considerado um fato histórico. Não se ama mais ‘em nome de’. Aquela coisa do ‘estou com ela porque prometi à mãe dela que iria cuidar até o fim da vida’ ou ‘estou com ela por causa dos filhos’. Hoje em dia ninguém mais tem disculpa para estar ou não com tal pessoa senão a própria vontade. As pessoas estão com as outras porque querem. Sem explicação. Até porque se amantes resolverem explicar porque estão um com o outro, se separam (risos).

Não provoca insegurança, essa falta de laços? 
Gera insegurança para os covardes e entusiasmo para os criativos, para aqueles que vêm, no atual estágio, a possibilidade de se inventar uma nova era. Somos os passageiros de um novo mundo, temos a chance de reinventar o amor, a educação, as novas formas de laço social – seja no casamento, no trabalho ou na família – e até uma nova forma de envelhecer, já que, com os avanços da Medicina, as pessoas estão ganhando até 50 anos de sobrevida. Temos a vida toda por fazer. Muito pouco veio pronto. Temos a possibilidade do exercício maior do ser humano, que é a invenção e a criatividade. Estar mal neste momento é para aqueles que gostam do PF, do prato feito, para aqueles que preferem que alguém lhes diga com quem vão casar, o que vão comer, para onde vão nas férias. Só está mal hoje em dia quem gosta de passar férias na Disneylândia.

A juventude, então, é vanguarda nesse processo? 
Totalmente. É total vanguarda. Eu não os chamo mais de adolescentes (nem gosto do termo), os chamo de mutantes. Eles não são como seus pais, não há qualquer possibilidade de que sejam ou venham a ser. Não temos que ficar olhando para essa juventude com o nosso olhar careta de adultos e dizendo que eles não têm os valores que as gerações anteriores tinham, que não sabem o que fazem só porque entram em uma faculdade e mudam para outra, ou que não seguem uma religião ou que chegam tarde em casa. Ou, pior ainda, não devemos considerá-los superficiais porque ficam se beijando nas festas e propagando infecções de cárie (risos). Não acho nada disso. Estamos em um novo mundo e, se queremos entender qual é a química e como funciona esse novo mundo, não olhemos os velhos.

Os jovens já descobriram, então, essa nova forma? 
Voltemos nossos olhos para os jovens. Não somos nós que vamos criar os novos laços sociais, o que seria uma pretensão digna de certos advogados que acham que vão limitar o comportamento humano por meio de leis e determinações de como as pessoas devem se comportar. Isso é risível. Já existe um novo laço social, a sociedade não espera nossa autorização. A globalização já se deu. Em face disso, temos que ser rápidos. Temos que sair de nossa tranquilidade, dos nossos padrões. Precisamos saber que isso envelheceu, que nós temos novos problemas pela frente que não têm nada a ver com os de 30 anos atrás. E que já existem soluções. Devemos olhar para essa juventude um pouco como Fleming descobriu que tinha a solução da penincilina em suas mãos e que era só pegar o que estava em estado bruto (o bolor) e refiná-lo. A meu ver, devemos nos questionar sobre falsos medos.

De que tipo de medos estamos, então, falando? 
Por exemplo: as pessoas pensam que se não fizermos leis mais duras os meninos tresloucados serão todos promíscuos e irão morrer de aids. É mentira. Os índices de promiscuidade baixaram, nos últimos dez anos, na Inglaterra, na França, na Alemanha, na Itália e também no Brasil, segundo estudo publicado em outubro do ano passado. Temos é um novo tipo de amor, que não pode ser avaliado sob o olhar dos representantes do velho tipo. Precisamos olhar para esses mutantes, para essa juventude, e descobrir de que maneira eles se constituem. Temos que legitimar o que eles estão fazendo.

Isso não pode ser confundido com permissividade? 
Legitimar não quer dizer autorizar. Não estou dizendo que os pais devem dizer ‘então eu te autorizo a ir para a balada e voltar às 6 horas da manhã’. Essa posição também é reacionária, porque pressupõe autoridade.

O que o senhor quer dizer, então, com legitimar? 
Legitimar é encontrar as leis que regem esse novo tipo de vinculação e aplicá-las ao maior número possível de pessoas. Porque as pessoas precisam de uma nova bula para esse mundo. Ninguém sabe o que fazer dentro da globalização. Mas esses moços têm um savoir-faire, eles sabem viver neste mundo. Prova disso é a desenvoltura com que manejam os computadores e todas as novidades que surgem. Isso, de certa forma, enlouquece os pais e os educadores.

O autodidatismo é maior hoje? 
Essa é uma das fontes de conflitos. A geração com mais de 40 anos foi marcada pela intermediação do saber. Uma ação só se dá depois de um saber conquistado. Era a prudência do iluminismo: primeiro eu sei depois eu ajo. Não é o que acontece agora. Essa geração age e sabe simultaneamente. Isso revela um novo mundo. E, insisto, temos que legitimá-lo. Descobrir suas leis e com isso acalmar os mais apavorados, explicando o quanto de criativo tem tudo isso, em todos os níveis.

Esses jovens, que estão vivendo em um mundo tão diferente, ainda convivem com uma escola congelada nesse modelo de mediação de educação. Como se dá isso? 
A sociedade fica se perguntando quais seriam os novos rumos da educação, já que o modelo atual está falido. O que acontece hoje é simples: eles não convivem, acham uma perda de tempo total.

E para onde estes ventos da globalização vão levar a escola? 
Ela está vivendo uma crise muito grande. A escola, em um primeiro momento, era um pouco como O Ateneu, de Raul Pompéia, que dizia que tudo o que estava dentro da escola prestava e tudo o que estava fora não. Depois, a escola é a Caetano Veloso. Ou seja, não é mais ‘aqui dentro e bom e lá fora é mau’, é ‘meu bem, meu mal’. A época da discussão excessiva, sempre na tentativa de aceitação universal. Foi a pedagogia do ‘eu te entendo’. Eu diria que estamos tentando chegar em um terceiro momento, que suporta a impossibilidade do tudo saber e consegue orientar ou estar junto com o aluno neste limite, não transmitindo a idéia de que tudo é possível. Se isso não for feito, vamos continuar com o principal sintoma da pedagogia de hoje em dia, o fracasso escolar. Não é nem rebeldia, porque isso pressupõe que a pessoa não está aceitando algo mas está propondo uma alternativa. Hoje, simplesmente eles não se interessam.

Faltam as referências? 
Exato. Não pode haver rebeldia quando não há referências. Rebeldia pressupõe a existência de um padrão. O aluno de hoje é desinteressado e, quando o professor ameaça com a repetência ou suspensão, o jovem não dá a menor importância e se questiona porque o professor pensa que aquilo tem alguma. O professor diz que se ele não passar de ano não vai entrar na faculdade, mas o que ele reflete é que não tem certeza nem de que entrar na faculdade é o que ele quer. O professor avalia o aluno dentro de seu próprio universo referencial. A pedagogia, enfim, precisa de mudanças, assim como a psicanálise. Mas em ambas as áreas a resistência é enorme.

Na escola o cenário é o já descrito. A vida profissional, de certa forma conseqüência dele, também está sendo afetada pela globalização. Não há mais, por exemplo, aquela tradição de se formar em uma faculdade, entrar em uma empresa e ficar o resto da vida por lá. Quem lida mal com esse fenômeno? 
Quem lida mal são os pais. Não dá para dizer que os jovens estão sofrendo com a falta de referências, porque eles nunca a tiveram. Só se sente falta do que já se teve. A visão da sociedade que assegura o futuro do indivíduo é típica do mundo que estamos abandonando. Não falo nem, apenas, de trabalhar em uma só empresa ao longo da vida. Acho mesmo que os novos trabalhadores não terão uma única profissão, mas combinarão várias. Uma principal e outras acessórias.

E quanto à questão da mudança de curso? 
Há algum tempo, pouco, fiz um estudo a pedido da USP sobre a Evasão Escolar. Já chegou desta maneira, com o diagnóstico formado. E, na encomenda, pedia-se respostas para questões como por que motivos os alunos entram em História, mudam para Química, depois trocam para Letras. Por que estão tão perdidos. Essa visão, também, está toda errada. Não há evasão, os jovens estão é singularizando seus percursos acadêmicos desta forma. Esses meninos de hoje vivem uma realidade diferente das gerações passadas. Antes, o futuro era uma projeção do presente. O jovem ouvia dos pais que o importante era fazer Engenharia ou entrar no Banco do Brasil. Hoje em dia, isso é ridículo. O futuro é uma invenção do presente. Esse moço que, na faculdade, está mudando de um curso para outro, está na verdade inventando seu futuro a cada momento, sabe que a vida não tem piloto automático. Vivemos em uma sociedade de risco, não de garantias. Não devemos mais buscar garantias, e sim formas de não nos angustiarmos frente aos riscos, transformando-a em uma angústia criadora.

Ainda dentro da questão da escola: o ensino superior, especialmente no Brasil, caminha na direção oposta a essa tendência, apostando no modelo USP de especialização cada vez maior. Como o sr. vê essa situação? 
Vejo o ensino superior muito mal. Mas muito mal mesmo. Infelizmente vejo um número grande de faculdades particulares trabalharem com educação da mesma forma que os bispos das esquinas trabalham com a aflição humana ou que os livros de auto-ajuda trabalham essa questão. São verdadeiras fábricas comerciais, lamentáveis, de um nível de reflexão abaixo de zero. Essas instituições até cumprem as exigências ministeriais para o funcionamento do curso, como sala, currículo e títulos de professores, mas isso não basta. Elas matam justamente o vírus fundamental da universidade, que é a inquietação, a pesquisa, o inconformismo e a insatisfação com a resposta pronta. Tudo isso em nome da garantia de um suposto título, de cursos de pós-graduação – esses famosos MBA – que vão agregar valor ao seu currículo.

Isso no caso das universidades particulares. As públicas estão melhores? 
Não me entusiasmam mais, porque vejo nelas um arcaísmo muito grande. É uma academia distante das novas questões sociais do homem e que gera um saber absolutamente inútil. Espero e luto para que a universidade tome um novo rumo e possa ocupar o lugar devido na história, e não se transformar na Igreja Universal cover. Quanto à USP, que você citou, em que pese meu respeito por essa instituição, que é de longe a melhor da América Latina, ela poderia avançar muito mais se não tivesse tantos pruridos de uma burocracia acadêmica obsoleta. Mesmo sofrendo muito disso, consegue ser a melhor. Se não sofresse, poderia estar entre as melhores do mundo.

O senhor sempre foi um crítico do estudo do genoma e de suas promessas de cura. Hoje, trabalha em parceria com o Projeto Genoma, da Universidade de São Paulo. Mudou de opinião? 
Você tem razão, eu critiquei muito o estudo do genoma humano. Continuo tendo horror da visão do genoma como a possibidade do estabelecimento de um código de vida para as pessoas, onde haveria ligação entre determinação genética e comportamento. As pessoas usam as pesquisas genéticas para dar à sociedade a idéia falsa de que será possível determinar amor, felicidade de opções do homem por meio de suas determinações genéticas. Querem é animalizar o homem, acham que o grande barato será o dia em que o homem e uma vaca forem vistos da mesma forma. Mas achei interessante encontrar, dentro da USP, opiniões contrárias a essa visão totalitária.

O cenário que o senhor apresenta é semelhante ao de livros como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, não? 
Ocorre que, no ano passado, organizei um seminário chamado Sociedade de Controle versus Psicanálise. O objetivo era exatamente mostrar que, frente à globalização, a resposta da sociedade estava sendo a de aumentar o controle, fosse o digital, nos aeroportos e nas portarias dos prédios. Essa sociedade de controle iria – como acho que vai – sufocar o homem, retirando-o do contato com o outro. É uma falsa proteção, provisória, que ainda tem como efeitos colaterais a perda da cidadania e o aumento da agressividade.

Voltando à discussão do genoma: como se dá sua parceria com o Projeto Genoma da USP? 
Esse é meu projeto mais importante atualmente, e é único no mundo. O trabalho é feito com as pessoas que recebem diagnóstico de doenças genéticas, que é algo completamente novo. Dirijo um projeto conjunto ao Genoma, no qual utilizo a psicanálise nos pacientes do projeto Genoma. Está interessante porque a primeira parte deste projeto é o que chamei de desautorização do sofrimento.

Desautorização do sofrimento? 
As pessoas têm muito medo de lidar com o novo, com o surpreendente. E nada mais estranho do que um diagnóstico genético, que prevê coisas que ainda não estão ocorrendo. Antigamente você sentia alguma coisa e ia ao médico para ver o que era. Hoje, de repente, você não tem nada, mas alguém da família tem, você é chamado para fazer um exame e descobre que, dali 10 anos, vai ter uma paralisia, por exemplo. É muito maluco isso, na cabeça do indivíduo, difícil de compreender e de aceitar. Muitas pessoas, não suportando isso, imediatamente vestem a surpresa com o sofrimento que a sociedade espera. Se cria, então, uma relação muito ruim, da compaixão na família e o paciente entra em resignação. Essa atitude mútua piora muito a situação, porque a pessoa se entrega à doença e, ao fazer isso, a vida da pessoa acaba e o curso da doença se acelera. Mostramos aos pacientes a necessidade de sairem desse circuito da doença e entrar em uma nova experiência, inventar uma nova forma de serem e de aproveitarem a vida. É uma nova psicanálise.

Como foi crescer em Santos e que influência isso teve na sua opção profissional? 
Crescer em Santos me possibilitou crescer entre amigos. Me deu também uma liberdade de movimento que não teria em outra cidade. Pude, em Santos, conjugar os estudos com a praia e também o esporte. Por ser pequena e uma ilha, acho que Santos é uma cidade que sonha, que é sempre vanguarda. No golpe de 64 eu tinha 13 anos e vi minha Cidade perder um prefeito negro, Esmeraldo Tarquínio, que foi substituído por um militar que o bom gosto me faz esquecer o nome. É um turbilhão político e também cultural, com as músicas do Gilberto Mendes e do Almeida Prado, o Clube de Arte na Avenida Ana Costa, as exposições de quadros do Paulo Prado, a galeria da Cultura Americana, do CCBEU. O mar de Santos que infinitiza o olhar, a presença do estrangeiro, pelo Porto. A noção do intercâmbio por esse mesmo porto. Os jardins da praia e o respeito pelo belo… Não é à toa que existem tantos santistas que saíram da cidade e venceram.

Fonte: AT Revista, do jornal A Tribuna, de Santos/SP – www.atribuna.com.br