/Comentário de Como o Instituo de Psicanálise Lacaniana – IPLA – Enfrenta os Embrulhos do Real?

Jésus Santiago

do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG)

Quero expressar, em primeiro lugar, a minha dificuldade em comentar um relatório de atividades, sobretudo, quando este se refere à descrição de práticas que se desenrolam ao longo do tempo e segundo uma riqueza variada e complexa de elementos que, certamente, escapam ao escopo de um texto breve. Posso dizer que, ao contrário disto, o trabalho do IPLA, de autoria da Elza Macedo, facilitou-me a tarefa do comentário na medida em que busca elencar suas diversas atividades com argumentações que se embasam nos princípios que orientam seus diversos empreendimentos. Não pretendo, portanto, entrar numa discussão dos pormenores internos e específicos ao funcionamento das ofertas de ensino e pesquisa dos núcleos e dos cursos ministrados. Meu interesse principal é estabelecer uma conversação visando problematizar um dos princípios que, a meu ver, me parece crucial para a configuração do que é próprio nesta constelação interdependente de práticas clínicas e de ensino.

A interrogação que me ocorre fazer concerne ao princípio de que “o IPLA pauta-se pela pesquisa da segunda clínica de Lacan”. Antes de mais nada, chamo a atenção para o fato de que os últimos avanços desse ensino não são tomados, pela autora, como um conjunto fechado e acabado, visto que se prestam ao trabalho de pesquisa e confrontação com os desafios e exigências que o mundo atual coloca à psicanálise. Nesses termos, a segunda clínica não é apenas um corpo de noções e categorias que se encerram nele próprio, mas uma ferramenta apropriada para lidar com os impasses que atingem a prática do psicanalista, decorrentes da incidência transformadora da ciência. É notório o vivo interesse do Instituto da Psicanálise Lacaniana pelas mutações, na subjetividade contemporânea, que advêm, por exemplo: da escolha de bebês in vitro, das consequências do prolongamento da vida, das soluções científicas para as doenças genéticas e, em suma, do fato de que, nos dias de hoje, não se ama e nem se trabalha como em épocas passadas. Não há dúvidas de que o transcurso da evolução sintomática da civilização se encontra ancorado nos remanejamentos constantes do discurso da ciência, e que estes não apenas determinam o ambiente atual da psicanálise, mas também os delineamentos do que promete ser o seu futuro.

Nada dessa empreitada se insere nas iniciativas do protesto nostálgico a esses remanejamentos, cuja inspiração é o espírito romântico que, em oposição ao das Luzes, se apresenta amparado pelo julgamento ingênuo e carregado de pré-conceitos da tradição civilizatória. Considero, nesse sentido, decisivo enfatizar o modo como essas repercussões da ciência sobre a prática analítica são concebidas à luz da conceituação fundamental dos embrulhos do real que, como se assinala no texto, ficam mais evidentes, na época atual, com a dissolução gradativa dos efeitos de simbolização do Nome-do-Pai sobre o gozo do sintoma. Se somos modernos, se levamos em conta o fato de que a ciência se institui por intermédio do corte incisivo com relação à tradição passada, isto não nos impede de admitir que o real se encontra nas embrulhadas e nos emaranhados do verdadeiro.

Há toda uma vertente ideal da racionalidade científica que se apresenta pelo desmascaramento do caráter contingente, e mesmo arbitrário, dos semblantes que estruturam o funcionamento da sociedade. Afirmar isso não quer dizer que os semblantes não sejam necessários para dar lugar ao fator estruturante das verdades que pesam, de maneira substancial, na própria existência do laço social. Talvez, essa seja a característica principal do que Lacan almeja valorizar naquilo que se escreve como o discurso do mestre.

Postular que o laço social se tece por meio dos semblantes não impede à psicanálise de se associar ao ideal da ciência expresso na denúncia reveladora do valor de semblante dessas verdades estruturantes. O maior exemplo disso é que, desde os anos 30, Lacan se mostrou sensível à decadência e ruína da autoridade paterna. No entanto, mostrar-se lúcido quanto declínio da função paterna e de todos os ideais que lhe são inerentes não significa que se pode ir além deles sem saber utilizá-los. Vale dizer que, para a psicanálise, os semblantes também são necessários. Porém, que ordem de necessidade a clínica psicanalítica propõe para a existência dos semblantes? Antecipo que o simplismo da resposta sugerida pela psicanálise é apenas aparente! Se é verdade que os semblantes não passam de semblantes, porém, tomemos os melhores para fazer o menos mal possível.

É, nesse ponto preciso, que a psicanálise também se distingue da ciência. Em outros termos, fazer vacilar e tremular os ideais ao revelar o seu caráter de semblantes, não implica assumir que outros semblantes não sejam necessários. Pode-se supor, como afirma a autora, que por essa mesma razão Lacan se mostra, até o final de seu ensino, às voltas com os chamados embrulhos do real. Uma preocupação que é levada ao ponto de tornar tais emaranhados, tais embrulhadas, como objeto de uma nomeação, capaz de apreender o real do sintoma, nomeação fabricada por meio do neologismo estembrulhos [stembrouilles]. Isso significa que o real do sintoma não pode se desvencilhar inteiramente de sua opacidade fundamental, e que é de sua índole não se mostrar, na plena luz do dia, como uma realidade transparente.

A meu ver, um tal enfoque é o que, nos espaços clínicos do IPLA, incita colocar à prova uma prática clínica que se traduz pela junção da contemporaneidade dos sintomas e a segunda clínica. Ou seja, a diversidade sintomática, expressa no enfretamento dos embrulhos do real, é o que institui a necessidade, do que se designa como uma clínica pragmática, uma clínica das suplências, por oposição à prática da interpretação calcada nas formações do inconsciente. Como se refere, Serge Cottet, nas Entrevistas do Momento Atual, trata-se de um campo fértil à exploração da função inventiva do sintoma que, em última instância, obriga-nos a explicitar os requisitos da clínica do enodamento e de todos os recursos referentes à sua aplicação, a saber: o nó, o furo e o corte. Parece-me evidente a exigência com a qual o IPLA se debate, a saber: resgatar as insuficiências da clínica psicanalítica diante das expressões contemporâneas do sintoma. Nesse sentido, vejo com bons olhos a preocupação incessante em associar o trabalho clínico com o trabalho investigativo, com o acompanhamento múltiplo e crítico dos casos, tendo em vista que não são poucos os obstáculos teórico-clínicos que se interpõem nessa tarefa institucional.

Na articulação entre esses dois planos distintos da prática ofertada pelos Institutos – a pesquisa e a clínica –, coloca-se, a meu ver, uma diretiva fundamental relativa a um desses obstáculos que é a tendência de estabelecer um equacionamento rápido entre as categorias do último ensino de Lacan e a aplicação da psicanálise à atualidade do sintoma. Observo que, muitas vezes, procura-se reduzir o que se constitui como uma elaboração complexa, por J.-A. Miller, do chamado inconsciente real e o substrato intratável do sintoma. É preciso distinguir o que se manifesta como o intratável que se deduz de um longo trabalho de análise, em que a decifração do material inconsciente teve um lugar destacado, e o incurável proveniente do elemento irascível do gozo nos novos sintomas. O caráter ininterpretável do inconsciente, presente nos casos de psicose e de novos sintomas, com a pouca permeabilidade desses sujeitos aos efeitos da função da palavra, não pode ser confundido com o desabonamento do inconsciente tomado como traço marcante do final de análise.

Creio que a vertente pragmática que buscar isolar o material sintomático com o intuito de favorecer, seja uma separação com o destino nocivo do gozo, seja uma forma de suplência que permitiria reparar uma carência simbólica, não deve ser concebida à luz da noção de inconsciente real e, tampouco, do viés reparador do sinthoma. Com isso, procuro salientar que cabe aos Institutos calcular as consequências e os riscos de um empreendimento que, apesar de contar com a garantia epistêmica da segunda clínica de Lacan, não estão imunes à absorção, em seus achados e inovações, das demandas do mestre contemporâneo. Apenas a existência da Escola de Lacan, entre nós, e uma política de formação rigorosa e sistemática sobre o real do sintoma permitem lidar com a linha tênue que separa o campo da psicanálise pura e aplicada e o campo dos usos degradados e triviais de sua prática.