/Conferência de Miguel Reale Jr.

Sinopse por Andréa Naccache e Margareth Ferraz

Abertura – Jorge Forbes

Em uma reunião no Hotel Transamérica, em São Paulo, na quarta-feira, 11 de setembro de 2002, Forbes compartilha, com amigos, sua apreensão com os caminhos do luto, passado um ano do atentado ao World Trade Center. Delinearam-se duas vias de resposta. Uma, a de George W. Bush, reforça a unilateralidade das decisões, afirma uma certeza, maniqueísta, do bem e do mal, traz uma visão simplória e reducionista de que a biologia determina nossos desejos e faz crer que para tudo há remédio. Para Bush, “o preço da liberdade é a eterna vigilância”.

A outra via destacada por Forbes responde à queda do símbolo com o renascimento cultural, a relativização das verdades científicas, o aumento da responsabilidade subjetiva, a definição de uma certeza sem garantia e arriscada, e o estabelecimento de um novo pacto, “incompleto e arriscado, mas criativo e entusiasmado”. Para Miguel Reale Júnior, “o preço da liberdade é o eterno delito”.

“O Homem que perdeu o silêncio”, tema desta reunião, foi a interpretação de Forbes ao argumento proposto por Reale: “ao habitante do tempo, destinatário de todas as informações sobre o acontecido em toda parte, a todo o instante, não mais se lhe permite o silêncio” (citação do texto-convite de Reale). A psicanálise mostra, com Forbes, que ao ir além da cena, chega-se ao obscuro e não, ao “saber mais”. O ilimitado deste momento da civilização, o “tudo pode”, leva à depressão, à angústia e à ansiedade.

Por isso, a via da psicanálise é a segunda, daqueles que defendem um mundo incompleto. Ao contrário da busca por “saber mais”, Forbes mostra que no divã o analisando revive sempre o encontro, tal como o de Carlos Drummond de Andrade, de uma pedra no meio do caminho. A psicanálise fala em responsabilidade pelo acaso, pelo encontro fortuito, pelo silêncio da surpresa.

Conferência – Miguel Reale Júnior

Reale parte de uma constatação: no momento atual, a sociedade é caracterizada por não a compreendermos totalmente. Isso o preocupa porque, sem uma racionalidade do conjunto, é necessário encontrar novas bases de preservação da dignidade humana, dos direitos humanos. É necessária uma nova racionalidade, não-totalitária, capaz de conciliar razão e desejo.

A humanitas constrói-se como tal num processo, num contínuo histórico em que se nota um acúmulo de formas do ser, entende Reale. O homem apenas encontra seu significado no conjunto – seu status – se for capaz de visualizar-se nesse processo.

O quattrocento marca a época em que o homem se descobre como processo, quando do surgimento da perspectiva na pintura. Olhar o horizonte foi, para o renascentista, a possibilidade de ver o futuro e localizar a individualidade. Nesse novo enfoque, as luzes estão no homem. Tem início, assim, uma racionalização progressiva que Reale vê com reservas: há, para ele, loucura em isolar-se no totalitarismo da razão, que despojaria o homem do desejo.

O indivíduo moderno pensa-se em termos de liberdade e formula direitos defensivos contra o arbítrio estatal (a dita primeira geração de direitos humanos, ou seja, os direitos políticos, de expressão de pensamento e de manifestação religiosa, por exemplo). Com o tempo, porém, a mera restrição à intervenção do Estado já não parece suficiente para garantir a dignidade e surge a chamada segunda geração de direitos humanos, que determina a promoção, pelo Estado, do bem-estar econômico e social. Haveria ainda uma terceira geração de direitos humanos, que envolve os direitos da personalidade, da intimidade, da vida privada, do meio-ambiente e outros. Mas Reale prefere não pensar separadamente as gerações, ele defende a indivisibilidade dos direitos humanos, ancorados todos no propósito único da preservação da dignidade da pessoa humana.

Hoje, a sociedade vive de informações on line e toda a população tem acesso à mesma mídia, embora haja um grupo socialmente estabelecido e uma população marginal. Além disso, não há mais o unicentrismo renascentista que exigia a dispensa do desejo. Há um policentrismo, no qual centro e periferia se identificam, e por isso o homem, a partir de qualquer lugar, pode considerar-se no centro do mundo. A informação profusa e difundida permite ao homem ver o mundo que quer, todo voltado para si. Com isso, desaparece sua capacidade de tolerância, suas demandas tornam-se urgentes.

Ao eliminarmos a limitação do espaço, mostra Reale, passamos a viver em função do tempo. Isto implica perdermos a distância. É significativo: percebemos o atentado em Nova Iorque como se acontecesse aqui.

Bombardeado de informação, o homem ficou sem possibilidade de introspecção ou contemplação. Não há mais silêncio, não há “ocasião de degustar informações consigo mesmo”.

Nessa medida, Reale insiste que precisamos de uma nova geração de direitos, de caráter defensivo. Dessa vez, não apenas em face do Estado, como anteriormente, mas considerando na atualidade também os meios de comunicação e a publicidade irrestrita como agentes invasivos.

A dignidade, define ele, é estar hígido e protegido do mundo da informação, dos modismos, do marketing e da criação de desejos artificiais. Ele usa como analogia o teatro municipal de Niterói, onde esteve recentemente: um prédio marcado de identidade, dignidade. O teatro de Niterói é menor que o de São Paulo, e também mais antigo, de 1852. Nada mais oposto a ele que um shopping center. Reale recorda haver um em frente ao teatro, em Niterói. Shopping center, para ele, é um não-lugar, indistinto, sem singularidade.

Ao encerrar, Reale esclarece que para promover a dignidade o direito defensivo proposto não precisa ser conservador, não há de ser uma medida de limite da expressão. Ele nota que a comunicação é pautada pelo nível crítico da opinião pública e, justamente por isso, reconhece ser a sociedade que elimina o próprio silêncio: afinal, a intimidade é exposta pela sociedade e assistida avidamente por ela mesma. Nesse caso, o limite ético aos meios de comunicação não pode ser determinado em censura prévia, melhor ser pensado como uma medida de “legítima defesa”, a cargo do próprio destinatário da informação.

Intervenção do debatedor – Renato Janine Ribeiro

Para comentar a conferência, Janine sugere, antes de tudo, que as mudanças do nosso mundo não sejam pensadas como perdas, embora não se trate também de optar pelo shopping, em detrimento do teatro. Quanto à mídia ou especificamente quanto à televisão, Janine mostra o caráter ambíguo da novidade que ela representa: se por um lado, geralmente traz um conteúdo raso, por outro, ao difundir o consumo, faz com que a sociedade compartilhe desejos – apesar das perversidades da publicidade, que poderiam ser restringidas. Dessa forma, a televisão rompe a hierarquia de consumo, faz-se democrática e arrebenta a abstenção dos pobres quanto à desigualdade: não é mais aceito o que antes era justificado pela providência divina ou por consolos sucedâneos. O menino pobre tem “inveja do tênis”, na paródia que Janine faz de Freud.

Em contrapartida, aponta Janine, a população insatisfeita e confrontada com a atual dificuldade de mobilização social tende a dar-se à franca violência, que assusta e comove a sociedade porque derrama sangue explicitamente, à diferença, por exemplo, do crime do “colarinho branco”, que atinge muitos mais, sem que vejamos diretamente o sangue que derrama.

Intervenção do debatedor – Tercio Sampaio Ferraz Junior

Em primeiro lugar, Tercio Ferraz articula a intervenção de Renato Janine em relação à proposta de Miguel Reale Jr. Janine apontou a função positiva da mídia na democratização da informação: é uma interpretação voltada ao Brasil de hoje, que ainda tem o cerne de seus impasses na questão social (os direitos sociais são tardios no Brasil). Tercio Ferraz acredita, no entanto, que a proposta de Miguel Reale pode ser pensada para um momento posterior ao dos impasses de igualdade social. A resistência proposta por Reale, a seu ver, opõe-se a um outro fenômeno, a uniformização.

Os meios de comunicação coroam a uniformidade social quando se dirigem a todos igualmente. No entanto, Tercio Ferraz nota que o tratamento uniforme simplesmente sobrepõe-se, e, com isso, apaga os parâmetros da discussão sobre igualdade e desigualdade – o que não quer dizer que a questão social esteja resolvida.

Na sociedade uniforme somos todos consumidores, e, assim sendo, diz Tercio Ferraz, não precisamos ser pensados nem como sujeitos, nem como dotados de dignidade. Isso implica, inclusive, numa mudança da noção de liberdade, não mais estruturada da forma moderna, em que um homem livre é contraposto a outro homem livre, como um ideal. A liberdade do homem uniformizado está em curto-circuito com a liberdade do outro. Isso requer novas bases de compreensão: a noção de sujeito deixa de ser necessária e não se pode mais pensar o indivíduo isoladamente.

Intervenção de Jorge Forbes

Forbes questiona o que pode significar a dignidade. O afeto da indignação é pretensioso, moralista, de quem se faz porta-voz de algo superior e permite-se julgar. A dignidade não pode ter essa carga moral. No entanto, quando Reale afirma “o preço da liberdade é o eterno delito”, sabe-se que ele não escolheu o caminho da moral. A frase de Reale – Forbes indica – tem sua correspondente com Caetano Veloso: “de perto, ninguém é normal”. Ambas contam com a existência de um ponto, um ponto de desejo em nós que nos divide, e sobre o qual é necessário silêncio.

O desejo irrompe em reação a todo esforço de ortopedia, insiste Forbes. O atentado de 11 de setembro mostra aos americanos (ou ao mundo) que algo sempre escapará às tentativas de amordaçamento, normalização. Maior a investida pela ortopedia, mais estrondosa a irrupção.

Em psicanálise, enfatiza Forbes, é melhor pensar em vergonha que em dignidade, como quer Lacan no Seminário 17, O avesso da psicanálise. Não se trata de “causar vergonha” em tom superegóico, mas de “ter vergonha”: marca de uma dignidade antes sofrida que exuberante.

Debate

Com o encerramento das intervenções, houve a abertura para manifestação do auditório. O intervalo para o café propiciou a antecipação de um debate vivo entre os jornalistas, empresários, psicanalistas e juristas presentes, e repercutiu nas questões formuladas durante a discussão.

Miguel Reale Jr. responde a Renato Janine, Tercio Ferraz, Jorge Forbes e conversa com o auditório. Estabelece um diálogo a partir das questões ou comentários de Lino de Macedo (USP), Paulo Bessan (Diretor do Zoológico de São Paulo), Carlos Genaro Gauto Fernandez (EBP), Thelma de Souza (Deputada Estadual) e Maurício (do Globo Repórter).

Incitado pela reação calorosa de seus interlocutores, Miguel Reale percorre vários temas. Seu fio condutor é a questão de como escapar à uniformidade cinzenta do “homem que perdeu o silêncio”, quando a uniformização é operada pela mídia. O Estado por si só não tem instrumentos para tanto, diz Reale, mas pode atuar em parceria com a sociedade civil, fazendo com que seja ouvida. Sempre que essa parceria se efetiva – ele reforça – surgem resultados positivos.

Em seu tempo recente de Ministério da Justiça, Reale propôs, por exemplo, a criação de um ombudsman nas empresas de comunicação. Como empregado selecionado por elas, porém independente e com garantia de emprego, este profissional deveria ter condições de levar a público críticas que recebesse sobre a programação. Na ocasião, Reale reuniu diretores das empresas com a proposta. No período de seu ministério, o projeto mobilizou ao menos a Radiobrás. Sem censurar a geração de conteúdo da mídia, este projeto de iniciativa estatal visou garantir que a sociedade civil passasse a ser um personagem capaz de expressar as próprias críticas e ter retorno sobre elas.

Encerramento – Jorge Forbes

O analista, ao final – aludindo ao título do encontro – prefere silenciar. Forbes apenas ressalta, diante daqueles que se reuniram tocados pela idéia de uma perda do silêncio, que hoje lhe parece mais importante ter o envolvimento de cada um nessa causa que nos adverte da incompletude, que esperar algo de quaisquer instituições. Sob esse ponto de vista, há na atualidade o retorno de uma certa artesania, propícia a uma nova forma de laço social.

Ao encerrar, Forbes noticia ser esta a primeira vez que Reale fala em São Paulo desde sua saída do Ministério, e agradece o gesto, uma homenagem prestada por Reale aos amigos ali presentes.