/Um pequeno questionamento

Chaim Samuel Katz

Discurso de posse na Academia Brasileira de Filosofia, no Rio de Janeiro, 17 de janeiro de 2008.

Em 1919, Freud publica um texto sobre o que ele chama das Unheimliche, o que é não-familiar, é indomesticado, estranho e inquietante, o que assombra àquele que o experimenta, o sinistro(1). Se elabora tal questão baseado em grande número de exemplos e escritos, se o que o interessa é mostrar como a Psicanálise encara e produz a questão da Unheimlichkeit, um escrito, melhor dito, um enredo, roteiro ou argumento é seu fio condutor: o conto ou novela O homem da areia, der Sandmann, escrito por Ernst Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1822) e situado entre suas “peças noturnas” (die Nactstücke).

Sabe-se que Hoffmann tinha ampla formação jurídica mas que sua grande paixão eram as artes, especialmente a música. Considerado o fundador da crítica musical alemã, talvez o primeiro crítico a descobrir o enorme gênio de Beethoven, foi cenógrafo, diretor teatral, grande compositor e maestro e suas estórias inspiraram grande número de compositores.

Se nos recordamos de três deles: Schumann, com sua Kreisleriana (de 1838; escrita por Hoffmann em 1812, inspirada no grande valor musical do Kapellmeister Johann Kreisler, personagem criado pelo próprio Hoffmann, um Doppelgänger, seu duplo), a famosa suite “Quebra-Nozes e o rei dos ratos” de Tchaikovsky (de 1892) e os Contos de Hoffmann de Jacques Offenbach, de 1881, sua última obra, inacabada (que era considerado o Liszt do violoncelo, cujo nome era Jacob Levy Eberst), veremos sua intensidade e importância. Mas é esta última, uma ópera (Offenbach, 1829-1880, filho de um chazan, é tido como o inventor do gênero “opereta”), o que me estimula a experimentar psicanaliticamente o alcance da interpretação freudiana. Pois o personagem de Hoffmann se apaixona verdadeiramente pela boneca Olímpia, como nossos filhos pelas Barbies e nós!! pelas bonecas infláveis.

Claro que a musicalidade de Hoffmann se fez ouvir também na paixão pela sua aluna de canto, Julia Mark, de 14 anos então, mas isto é assunto pouco ou não habitualmente filosófico. Do mesmo modo, apesar da tradição hermenêutica insistir que Hoffmann trocou seu terceiro nome, Wilhelm, por Amadeus, para homenagear Mozart, parece mais que ele quis, até inconscientemente, se colocar no mesmo plano deste, duplicando Theodor – theodôron diz “ dádiva de Deus“- com Amadeus. Ambos os assuntos são mais da alçada psicanalítica do que exclusivamente filosófica, mas indicam que a Psicanálise, já há mais de um século, provoca novas questões para o pensar.

Deixemos temporariamente nominações e amores e vamos ao enredo de Hoffmann, desde Freud.(2) Na sua ficção, trata-se inicialmente de uma correspondência onde um jovem estudante, Nathaniel, escreve a seu amigo Lothar, cuja irmã Clara (que é também o nome da personagem principal do “Quebra-nozes”) é sua namorada. Fala de seus enormes temores, fundados na existência de um “homem de areia”. Quando pequeno, não querendo ir para a cama dormir, ou quando queria ver algo que não deveria, sua mãe o ameaçava com a presença de tal personagem, dizendo-lhe que “estava chegando o homem de areia”, que arrancava os olhos das crianças que se recusavam a dormir. Mesmo que posteriormente a mãe lhe dissesse que tal personagem era uma ficção, a babá de Nathaniel afirmava que o ser existia e era um homem cruel e deformado, que arrancava os olhos das crianças curiosas e os levava como alimento de seus filhos (do outro lado da lua).

O pai de Nathaniel, presumivelmente um alquimista, recebe sempre uma visita misteriosa, à noite. Quem seria? Nathaniel se esconde no escritório do pai e reconhece o advogado Coppelius, que almoça ocasionalmente com sua família, agindo sempre de modo assustador. Nathaniel surpreende ambos junto a um braseiro e repara com se assemelham. Ele é detectado por Coppelius, que quer jogar brasas nos seus olhos, mas o pai intervém, impedindo-o de fazê-lo.

Um ano mais tarde, Coppelius reaparece em sua casa. Ficando a sós com seu pai, eles trabalham em algo secreto, até que se dá uma explosão e o pai é encontrado morto. Nathaniel desfalece e segue doente por um período. Nesta mesma carta, diz ao seu amigo (que fora criado, junto com sua irmã, pela família de Nathaniel) que reencontrou Coppelius, que agora se faz passar por um ótico italiano, usando o nome de Giuseppe Coppola. Ele lhe oferece “lindos olhos”, que seriam “apenas” óculos. Nathaniel compra dele um binóculo, com o qual se põe a observar a casa de um professor de Física, Spalanzani.

Na casa de Spalanzani há uma mulher, sua suposta filha, Olímpia, que fica sentada, sem se mover: “uma mulher alta e magra, de porte harmonioso e magnificamente vestida, estava sentada no quarto, frente a uma mesinha sobre a qual descansava os dois braços, com as mãos postas. Sentada de frente para a porta, eu podia ver por inteiro seu rosto angelical”. O que se segue é o profundo apaixonamento de Nathaniel, que esquece Clara para se dedicar a saber e ter Olímpia.

Olímpia é um autômato, seu mecanismo foi construído por Spalanzani e seus olhos por Coppola. Quando a vê mais de perto, Nathaniel observa que ela tem os olhos rígidos e paralisados, o que não impede seu enamoramento, ou até o estimula. Num baile, ele tira a boneca para dançar, como sua única parceira, apesar de seus gestos serem, como era de se esperar (!!), mecânicos e mortos. Spalanzani o “pai” de Olímpia, o convida para visitá-la em casa e o apaixonado jovem se depara ali com uma terrível cena, onde este disputa Olímpia, querendo seu mecanismo, enquanto Coppola quer os olhos do autômato, que ele mesmo havia fabricado.

Nathaniel desfalece novamente e quando desperta tem Clara e sua mãe bem próximas. Combina o casamento com sua comprometida, e parece recuperado do delírio. Antes das bodas, a seu pedido, sobem ao campanário da igreja, onde ele retira do bolso o binóculo. Através das lentes vê Clara, que está ao seu lado e procura jogá-la do alto, gritando “bonequinha de pau, gira”, “círculo de fogo, gira”. Lothar, irmão de Clara, sobe e a salva; Nathaniel olha os transeuntes atraídos pela cena e parece reconhecer Coppelius entre eles. Gritando “lindos olhos, lindos olhos”, ele se atira do alto e, claro, morre.

É Olímpia o que lhe causa a estranheza inquietante. Recusando a teorização, vigente na época, de que o infamiliar, o Unheimliche se deveria à incerteza intelectual acerca da experiência perceptiva, Freud mostra que o heimisch e o Unheimliche se dão em experiências que têm um solo comum de percepção, mas que este se fez de modo estranho, como no xenos grego que diz o fremdartig. Também no alemão, onde os empregados mais íntimos de um lar ou instituição, conselheiros heimlich, guardam o que é o secreto (geheim) mais íntimo e importante. O infamiliar já foi alguma vez, na infância, bem familiar. Suas manifestações denotam experiências já vividas, sob categorias que não se determinam por escolhas intelectuais mas pelas experiências infantis. Daí sua ambivalência, pois sua presença não garante suas evidências, que se fundamentam na infância remota, semprer remota.

O texto de Freud é de1919 e ele salienta que sua pesquisa é restrita, pois os tempos de guerra impedem uma bibliografia maior (e obrigam a um tipo de leitura pessimista, aliás, sempre presente em seus escritos depois desta época).

Qual o núcleo comum de sensibilidade que demarca a Unheimlichkeit? De acordo com Schelling, segundo Freud, “Unheimlich é tudo o que deveria estar em segredo”, mas que se revelou ou emergiu. Ademais, estamos numa época onde o Eu está politicamente dividido para os europeus, a guerra, este pólemos extremo, pai de todas as coisas, indica que não mais se afirma a unidade desta instância que percebe e coordena a consciência.

Para Freud, desde a etapa do narcisismo primário, desenvolve-se outra instância duplicada do Eu, que é a consciência em sua dimensão de não-unidade. Estas auto-observação, Selbstbeobachtung e auto-crítica, Selbstkritik, constituem a consciência como saberes, Gewissen, e tendem a separar-se do Eu, pondo-se a observá-lo à distância, tratando-o como um objeto (tal como na telepatia, pela qual Freud sempre se interessou). A consciência estará sujeita, também e sempre, como afirmava Nietzsche, a um eterno retorno do mesmo, um Wiederkehr des Gleichen: “a repetição das mesmas feições, caracteres, destinos, atos criminosos, até mesmo dos nomes, através das gerações continuadas” (246-293).

As representações não podem pensar adequadamente o que é “o humano”, pois tal divisão do Eu faz surgir um duplo do corpo, um Doppelgänger, um igual não-idêntico enquanto proteção do corpo e da destruição do Eu, o que nos habituamos a chamar de “alma” imortal. Fenômeno comum a “todos” os grupos sociais, enuncia-se a duplicação do corpo, enquanto alma, e também um corpo antecipador da própria morte, um anunciador da morte, “wird er zum unheimlichen Vorboten (precursor) des Todes”. Assim, com o narcisismo primário, a emergência do fenômeno da alma protege o indivíduo; e depois, torna-se sua própria ameaça.

Tal teorização remonta à obra de Otto Rank (Die Don Juan Gestalt). Mas neste seu texto sobre das Unheimliche vamos aprendendo que o duplo, o Doppelgänger, não é apenas uma figuração do igual, da imagem de si mesmo ou de uma experiência repetida. Freud diz que o duplo é uma garantia contra a morte, desde o assujeitamento aos ancestrais familiares, afirmação simbólica geracional e de herança, e ao mesmo tempo garantia perene da finitude. Ainda quando se correspondia com Jung, o materialista Freud postulou numa carta que, desde sempre, o humano sempre buscou amparo na sua duplicação individual e subjetiva: “Ocorreu me que o verdadeiro fundamento da necessidade religiosa é o desamparo infantil… Passada a infância, o homem já não sabe se representar um mundo sem pais, e então forja para si um deus justo e uma natureza bondosa, as duas piores falsificações antropomórficas que se revelou capaz de imaginar”(3) . E também a crueldade e os demônios, menos falsificações e mais o destino (Schicksal) inelutável do humano.

Portanto, na concepção freudiana, quando se dá o recalque das representações, qualquer afeto se torna em angústia. E na Unheimlichkeit, algo recalcado retorna; daí a identificação primordial com o heimisch ou heimlich, que assombra e aterroriza os indivíduos, por suas não-familiaridade atual.

Se as representações já não sabem ou não conseguem expressar a Verdade, o que garante a persistência do Eu e sua genealogia é o pai ou uma série paterna, que se faz em torno de situações acerca do lugar psíquico do pai: homem de areia, advogado Coppelius e o oculista Coppola, morte física do pai de Nathaniel, Spalanzani, estão em relação. Como no conto de Hoffmann, o medo de ficar cego pelas brasas é, como na lenda (e posteriormente no complexo) de Édipo, o medo da castração. Para Freud, não se trata de proteger os órgãos da visão, uma incerteza intelectual, mas “o ser preciso ficar cego”, pela adoração e temor simultâneos do pai.

Como ensinou este “iluminista sombrio” (Yirmiyahu Yovel), de acordo com Shakespeare e Goethe cada um “deve à natureza sua morte”, o que insiste desde sempre pelo processo de divisão psíquica dos indivíduos. Mas existe amparo, permanente. Aqui, o Homem de Areia e os outros “pais” são o pai temido, “de quem se espera a castração”, mas pais ambivalentes, que protegem e destróem, simultaneamente. O assujeitamento é ser Unheimlich de si mesmo. Para Freud, a família e o lar (Heim) são lugares de acolhimento, mas ali estão simultaneamente e sempre amor e ódio, continuação e destruição indissociáveis.

Pois bem, deste modo, do qual não posso tirar conseqüências importantes para o Pensamento agora, Freud abandona ou subordina a questão dos autômatos. Enfatizando a questão do horror e atração simultâneos, ele fundamenta o sentimento de estranheza nesta divisão que marca os indivíduos e cujo único apoio (Anlehnung) possível está na relação com o Pai. Ele inicia seu ensaio indagando porque “só raramente o psicanalista possui o impulso para as investigações estéticas, mesmo quando não se entende a Estética simplesmente como a teoria do Belo, mas como teoria das qualidades do nosso sentir”. E retoma os “sentimentos de natureza do horror e de aflição”. E aí está o Pai.

Contudo, com certeza, na Modernidade tais teses sobre o sentir já se encontravam bastante elaboradas, por exemplo, em Kant, acerca da questão do sublime e do pensamento infinito, baseadas, ao menos inicialmente, no pensador irlandês Burke.(4)

Autômatos

Autômaten, é um advérbio que diz “de seu próprio movimento”. Automatismós exprime “o que vem de si mesmo”; as portas do Olimpo se conhecem como autó-matós. Demóstenes chama a morte de natural, aitia automaté; uma causa ao acaso, diziam Aristóteles e Plutarco, “desde seu próprio movimento”. Por aí vamos ampliar um pouquinho a compreensão e atividade do autômato, não mais como (ou apenas) um fora do fisiológico, mas seu constitutivo necessário.

Tomando a questão dos autômatos desde a gênese cindida do psiquismo individual e sua continuidade possível sustentada pela “série paterna”, Freud recusa a tal indagação um valor para o questionamento. Ele mesmo nos diz que “a dúvida sobre a animação, que é evidente na boneca Olímpia, não se coloca, de modo nenhum, para a consideração deste forte exemplo de Unheimliche” (242;288). A partir da inauguração da continuidade psíquica pelo Pai e seu lugar e função, Freud fundamenta o estranho inquieto desde o que estaria na base do humano. Tal base ou ponto de “partida” unheimlich, como já vimos, é o corpo humano enquanto sexual, corpo nascido de mãe e pai.

Mas vamos ampliar a noção de automatismo, corporal e incorporal. Pois Olímpia não nasce de mãe, mas de dois pais masculinos, que são, freudianamente, o Mesmo na série paterna. Por isto e pelo modo como ela se construiu, Freud considera a boneca como um objeto exterior e seus movimentos como dependentes de mecanismos artificiais. Mas o amor e a repulsa que ela suscita, de que ela participa e provoca?

Ou seja, pelas exigências rigorosas de seu pensamento fundador, Freud abandona, por exemplo, a consideração da cena em que Coppelius tentou desatarraxar Nathaniel (segundo a narrativa deste): “e assim dizendo, ele [Coppelius] me agarrou com tal violência que minhas articulações estalaram, e começou a desatarraxar meus pés e minhas mãos, tornando a recolocá-los, ora aqui, ora ali”. Numa tradução francesa, uma nota diz que “tais cenas de horror são muito raras e tanto mais pungentes nos Contos Fantásticos” (p. 367). Claro que Freud não ignora tais elementos, mas ele os coloca numa série formal psicanalítica usual, postulando que a boneca ou autômato Olímpia é “a materialização da posição feminina de Nathaniel em relação ao pai na sua infância remota” (nota; 244;290).

Porém, como ser phantasma sem os autômatos, sem os artifícios? Somos todos desatarraxáveis, como o Geraldão de Glauco, que ama verdadeiramente sua boneca inflável e provoca, por tal amor, os ciúmes e hostilidades de sua mãe.

Nathaniel e Olímpia seriam irmãos, como se postula nas relações de parentesco contemporâneas, apenas por parte de pai, mas devemos saber que Olímpia é também seu ou sua Doppelgänger(in) feminino. Haveria que considerar que, em Olímpia, as passagens de uma extrema fixidez para movimentos bem lépidos, ou a emissão de uma voz aguda sem conteúdo, são constitutivas de processos de subjetivação e de apaixonamento. Se tais processos dependem, aparentemente, apenas de seus fabricantes, no “caso” de Nathaniel, dá-se emergência ou passagem de afetos assignificativos para afetos subjetivados, com forma simbólica e comunicacional precisa. Há uma convergência, mesmo que parcial e provisória, dissolvida pelo suicídio do jovem, que precisa do autômato. Olímpia, como ensinou Freud, é um fantasma feminino constitutivo de Nathaniel, mas, acrescento eu, também seu autômaten.

Sabemos, por exemplo, como isto se considerou, diferentemente, na obra de Heinrich von Kleist (contemporâneo de Hoffmann, 1777-1810), com seu teatro de marionetes. Este se pergunta a respeito dos dançarinos ingleses amputados, que têm graciosos movimentos usando pernas de pau. É possível um dançarino sem pernas fisiológicas? Sabemos que um títere dança, sai de um estado de fixidez absoluta para uma extrema mobilidade (como o fazem Nathaniel e Olímpia, no baile, segundo Hoffmann) e aí se cria uma outra subjetividade, distinta da forma amorosa “normal”, esta que se daria unicamente desde corpos fisiologicamente gerados, como Clara e Nathaniel. Como postulou Kleist: “No mundo orgânico, quanto mais fraca e obscura parece a reflexão, mais a graça é soberana e radiante”. Prestemos atenção nos novos corredores de 400 metros, com suas pernas rápidas fabricadas com ligas de carbono.

Indico apenas, que já no século XVIII Julien Offray de La Mettrie procurou demonstrar, à diferença das crenças religiosas vigentes, que o corpo ou os corpos funcionam determinados por uma Mecânica. Se os corpos vivos se comandam desde uma Mecânica interna, os corpos artificiais o fazem através de uma mecânica externa: “Todo indivíduo desempenha seu papel na vida de acordo com o que foi determinado por mecanismos propulsores da máquina, máquina esta que não foi construída pelo próprio indivíduo”. Se não é possível seguir inteiramente as conclusões de La Mettrie, aprende-se que há uma mecânica que gere os humanos ou assujeitados, e que estes nada podem fazer para modificá-la. Ela se estabelece como estrangeireidade.

Também o pólemos, a luta ou a guerra de Heráclito, saiu da dimensão dos corpos fisiológicos, por exemplo, como aprendemos que os modernos Exércitos (ao menos até o período que antecedeu o bombardeamento de Hiroshima e Nagasáki), se construíram, desde o século XVI, como máquinas de produzir constantes Unheimlichkeiten, dirigidas desde o poder central de Um Príncipe, representado por seus generais. O papel do soldado, o ser soldado era obedecer instruções consoantes à uma organização militar que ele ignorava inteiramente, e não se constituir subjetivamente. Seu corpo lhe era estranho e como que produzindo movimentos que sua (dita) subjetividade desconhecia. A isto Foucault chamou de displinarização dos corpos.

O parágrafo acima foi fundamentado na noção de Totale Staat, de Ernst Jünger e Carl Schmitt. Mesmo quando não tenham estado no centro dirigente, segundo estes ideólogos nazistas, de importância cada vez maior nas relações políticas contemporâneas, só a mobilização total no interior de um estado total pode fazer positivar um mundo afirmativo. Por isto se deveriam retirar de sua circulação os que não o constituíssem na sua Humanidade plena. Se os leitores de Giorgio Agamben aprenderam que há corpos que podem ser retirados de circulação para servir a corpos privilegiados, o dito homo saccer, falta aos teóricos contemporâneos uma abordagem desde os sentimentos desses corpos, nascidos para a assujeição. Ampliado desde o pensamento da indissociação entre máquinas e fisiologias, através da elaboração freudiana de Umheimlichkeit-heimisch poderemos nos instrumentar distintamente.

Do mesmo modo se construíram as modernas indústrias, conforme o mostrou o grande Chaplin (em 1936, no extraordinário Tempos Modernos). Ou, mais importante ainda para mim, constitui o absurdo contemporâneo com que Kafka fundamentou na sua obra.

Enfim, mas especialmente neste nosso contexto, haveríamos de chegar à nossa contemporaneidade, onde, a partir de 1940, o matemático Norbert Wiener enunciou os princípios da Cibernética, que não distinguem entre organismos vivos e mecanismos artificiais. Tais sistemas são “auto-subsistentes e auto-controláveis (através do mecanismo de feedback); e sua produção e circulação se faz através de mecanismos de informação e comunicação”(5).

Pensemos na Unheimlichkeit incorporal, lembrando a lenda do Golem (que podemos aprender com Gershom Sholem), central na produção dos judeus, grupo ao qual (judeu) Freud pertenceu. Fabricado com argila pelo rabi Loew, sua autonomia de movimentos se deveu ao fato do sábio ter escrito o nome místico de Deus, colocando-o na boca do ser. Quando o rabi, na véspera do shabat, se esqueceu de tirar o papel com o Santo nome da boca do Golem, este se tomou de movimentos animados e caóticos, destrutivos, e só pode retornar à figura de “monte de argila”, depois que o rabi “desligou” seu software divino, tirando-lhe o papel da boca. Deus seria movimento incorporal e caótico, os humanos tentam fabricá-lo corporalmente, conforme ensinaram Xenófanes e Feuerbach. Quem sabe, fico imaginando enquanto consolo, os rabis do século XX se esqueceram de desligar seus algozes nazistas.

A Unheimlichkeit se faz escutar desde sua faceta cômica. Recordemos o Don Juan de Théophile Gautier (La Comédie de la mort), grande conquistador de mulheres que na velhice é, se compõe de perucas, dentaduras, bigodes, sofre de gota, reumatismo, paralisia e, especialmente restritivo para um Don Juan, impotência sexual. Como constituir um Don Juan sessentão, numa época cronológica onde nosso herói é chegado “ao tédio e à melancolia”? Hoje, já o sabemos, pelo poder e dinheiro. Don Juan broxa e pelado… O produto do sujeito não se restringe apenas à potência de seu corpo fisiológico e seus encontros.

No campo da produção do saber, é preciso retomar a questão da Técnica, do chamado inanimado na produção subjetiva, tal como se apresenta na contemporaneidade. Aprendemos como os grandes filósofos e pensadores se colocaram para enfrentar o mundo e suas questões desde o que eles podiam produzir filosoficamente. Se assim não fosse, se não pensássemos intempestivamente, de modo inatual, o que seriam Filosofia e Pensamento? Uma duplicação direta dos sentidos e uma impossibilidade de fundamentar a imaginação criativa, imaginou a maioria imanentista. Tive aqui o cuidado de tomar a faceta fundadora da especificidade psíquica em Freud, das matrizes ou patrizes do seus pensares. Observei como ele se baseou num corpo fisiologicamente nascido, mas dotado de “propriedades” atemporais, com um Eu para sempre cindido; e que a aposta teórica de Freud na série paterna faz nascer uma diferença lógica e ontológica, mostra que as subjetividades não se resumem ao nascimento pelo ventre materno. Esta apreciação freudiana se dá contra o presente e nos faz considerar o que Gilles Deleuze, seguindo os ensinamentos de Heidegger, conceituou como “forma pura do tempo”.

Porém, e há sempre poréns no pensamento filosófico, noutra direção, num pequeno e lindo escrito sobre Kant, Foucault ensina como o mestre de Königsberg mostrou que o Iluminismo “problematiza sua própria atualidade discursiva: atualidade que ele interroga como evento, como um evento do qual ele deve dizer o sentido, o valor, a singularidade filosófica e na qual deve encontrar ao mesmo tempo sua razão de ser e o fundamento do que diz”.(6) Evento é convergência, onde o que interessa à atualidade também compõe.

Se assim é, deve-se examinar mais atentamente o que constitui diretamente o corpo fisiológico, pois o nascer humano nunca se reduz aos corpos naturais individualizados. O que conhecemos como “corpo próprio” não é esta natureza que muitos se imaginam (Lucrécio, 98-55 a.C., em Natureza das Coisas) ensinou que não existe natureza “natural”).

Por exemplo, no nosso grupo social nascemos ou somos nascidos constituídos de outros: parteiros para cesarianas predeterminadas, ginecologistas, pediatras, clínicos, enfermeiros, nutricionistas, ortopedistas, planos de saúde e secretários para marcar horários e conveniências; salas de parto, aparelhos de esterilização, instrumentos para indução, anestesia, medicamentos e exames intermináveis… Do mesmo modo, os fetos contemporâneos são fotografados e visualizados desde que se os detectam; e a enxurrada de novos exames indica uma futura Eugenia, na medida em que se avalia o filho a vir, se ele merece nascer desde os critérios normativos de uma saúde fisiológica dita normal, até a beleza visibilizada nas ultra-sonografias; avaliando também as capacidades intelectuais que já poderiam ser medidas e pesadas. Trata-se de Unheimlichkeiten que clamam a subjetividade, que obrigam ao assujeitamento, mas nas quais ninguém se reconhece “inteiramente”.

A estrangereidade é produzida juntamente com o que é heimisch. Antes de aspirar aos ideais do Eu, o Eu é destinado a ser estanho de si mesmo, a só introjetar no interior de categorias bem estritas.

Contudo, e para terminar, há outra nova e importante categoria de estranheza, que podemos acompanhar com a pequena história e as indicações do livro de um grande filósofo francês, Jean-Luc Nancy. Nascido em 1940, aos cinqüenta anos de idade é obrigado a se submeter a um implante de coração. Obrigado? Pois não se trata mais do que eu elaborei como extensões subjetivas que se podem escolher ou tentar escolher (como as clonagens terapêuticas e reprodutivas, as próteses, implantes, cirurgias plásticas, pernas e seios artificiais, os espermas congelados e as barrigas de aluguel, os chips, a lipoaspiração e as cirurgias bariátricas, as readaptações às estéticas normativas exigentes de nossos dias etc.), mas da vida possível de um sujeito. Se ele não se deixar introduzir um estrangeiro, desde o transplante de um coração alheio, Nancy desapareceria enquanto subjetividade corpórea! Trata-se, antes de tudo, de conseguir um Doppelgänger morto, um Doppelsteher que tenha um órgão compatível.

Efetuado o transplante, um único corpo conterá dois sistemas imunitários, onde um, dito corpo original, rejeita o outro, órgão transplantado. Mas o órgão transplantado é quem ou o que permite a permanência de sua vida “geral”. Não se trata mais de um “corpo sem órgãos” (como queria Arthaud), mas de um corpo que funciona na base de um único órgão.

Além disto, se há uma incompatibilidade extrema, Nancy deve tomar uma imunoglobulina extraída de coelhos (ciclosporina) , que protege contra a rejeição do sistema “humano”. Só há vida subjetiva desde uma composição, a Unheimlichkeit é condição dada a priori e o filósofo se vê acoelhado, pois seu “segundo nascimento” não é propriamente fisiológico, mas técno-fisiológico, de várias emergências. Além disto, o que o filósofo nem conegue elaborar no seu lindo e incisivo escrito, seu coração veio de uma mulher, são dois sexos num só (dito) corpo.

Se os transplantes são representáveis, se há uma história e transmissão das técnicas de tais processos, a experiência de Jean-Luc Nancy só se faz desde sua cisão entre o que é um corpo e a introdução de um intruso que lhe permite não apenas a existência mas o pensar lúcido, o que produz uma experiência irrepresentável ou não inteiramente representável, onde as representações não dão conta de sustentar o sistema que o salva para a vida. Como ele mesmo ensina, acerca de uma pretensa cisão radical entre tecnologia de autômatos e vida psíquica específica: “O debate entre os que querem que seja uma aventura metafísica e os que a tinham por uma performance técnica é vão: trata-se de ambos, dos dois”(7) .

Estamos aqui bem longe dos argumentos filosóficos tradicionais da redução da técnica à reprodução não-criativa ou a uma simples razão instrumental.

Numa época em que se colocam, de modo grave, as questões referentes ao que se chama de terceira idade, num país como o Brasil onde se valoriza a cultura do corpo elaborado esteticamente e culturalmente, o debate acerca da “idade cronológica” e seu fenômeno social de envelhecimento, nesta época dos novos e incisivos meios de comunicação e formação de pensamentos, das novas técnicas que obrigam ao padrão rejuvenescido, Nancy nos faz pensar quando, a respeito de seu corpo alvo de transplante, afirma: “Assim rejuvenescido e simultaneamente envelhecido, não tenho mais idade própria e nem tenho, para dizer melhor, idade alguma”. Ser de inúmeros nascimentos e emergências, entre Fisiologia e Tecnologia, seu corpo, bem como nossos corpos, se inscreve (ao menos) desde dois registros simultâneos e inseparáveis. Seu corpo, bem como o de todos nós. Mas a Unheimlichkeit está presente sem causar estranheza e inquietude momentâneas e ocasionais, pois nos constitui permanentemente.

Os outros e contemporâneos exemplos, que apenas indiquei, têm que ser repensados, na medida em que aprendemos como, cada vez mais, o humano é fabricante de si mesmo; ou, no mínimo, um montador de subjetividades tecnológico-metafísicas compostas. E pensamos e elaboramos como a contemporaneidade nos obriga a clamar e incluir as estranhezas. Quais os novos estatutos da Unheimlichkeit?

1. Freud 1919h, Das Unheimliche, em Gesammelte Werke, vol. XII. Trad. Brasileira, Standard Edição Brasileira, trad. Imago, vol. XVII. Se houver citações, o primeiro número refere-se às GW e o outro à ESB.
2. Sigo em Contos sinistros, edição de Oscar Cesarotto. Trad. Max Limonad. São Paulo, 1987.
3. Organizada por William McGUIRE, Freud/Jung. Correspondência Completa. Rio de Janeiro. Trad. Imago, 1976. [171F (2/1//10), p. 337].
4. Especialmente desde o conhecido livro de Edmund Burke [1757], A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful (Oxford e Nova Iorque, Oxford University Press, 1992), se distinguem, no conhecimento ocidental, Belo e Sublime. Burke postulou que o belo se diferenciava inteiramente do sublime, pois este último diz respeito às experiências psíquicas que não podem ser reguladas logicamente, ocupando amplamente os sentidos corporais e incorporais com um horror prazeroso, ligado à dor e ao perigo e que não se caracteriza necessariamente pela longa duração. Kant [1764], Observações sobre o sentimento do belo e do sublime (Campinas. Trad. Papirus, 1993) fala do caráter infinito e incomensurável (em grandeza e potência) do Sublime por diferença à finitude e comensurabilidade do Belo. Mas, dizia Kant, o que muito interessa aos psicanalistas clínicos, especialmente aos que lidam com psicóticos, desde seu horror infinitizado, aquele que está no regime sublimado não pode fazer juízo do Sublime. E haja Olímpias para amarmos…
5. Norbert Wiener, Cybernetics or control and communication in the animal and the machine. Hermann. Paris, 1958.
6. Michel Foucault, “Qu´est-ce que les Lumières?” in Dits et écrits. 1980-1988. Gallimard, vol. IV. Paris, 1994, p. 680.
7. Jean-Luc Nancy, L´Intrus. Galilée. Paris, 2000, p. 14.