/Reflexões a respeito de um primor de curso, por Leny Mrech

REFLEXÕES A RESPEITO DE UM PRIMOR DE CURSO

Leny Magalhães Mrech

 

No princípio, o encontro com um estranhamento: a captura pela palavra primor. Uma tentativa de decifrar seus múltiplos sentidos, tais como: “suntuosidade, magnificência/perfeição, beleza, esmero”, segundo o Aurélio ou, ainda, “uma obra feita com primor”, como destaca o Michaelis.

E, contudo, percebi rapidamente que não existiam palavras para designar aquilo que vivi ao longo do curso de Alain Grosrichard. Ele levou-me a vivenciar diferentes vagas: aquela de sua delicadeza no contato com cada pessoa. A de seu sorriso sempre presente, revelando um prazer em transmitir. A de sua generosidade, ao compartilhar infinitas referências. A do requinte de sua erudição em estudos grego-romanos. Em suma, ele levou-me a ter uma certeza: nunca mais lerei o Seminário XVII – O Avesso da Psicanálise – da mesma forma.

Mas, afinal, o que ele me ensinou? Primeiramente, chamou-me a atenção o seu ponto de partida. O mesmo de Lacan: a assistência, pois ambos partem não de uma concepção de assistência comum, de um simples público ouvinte, mas de uma assistência, na qual o objeto a ocupa um lugar de destaque: ele é o interrogante maior.

Grosrichard revela que Lacan, naquele Seminário, se dirige a uma assistência específica: a dos estudantes da Faculdade de Direito, dos estudantes de Maio de 68. Ele os nomeia de a-estudantes, ou seja, de estudantes que surgem como objeto causa de desejo.

Diante deles, Lacan ocupa um lugar estratégico, porque enfrenta os contestadores com uma provocação ainda maior: aquela trazida pelo discurso analítico. Ele revela o outro lado da crença revolucionária dos estudantes: a de eles serem capturados pelos laços sociais, pelos quatro discursos. Uma crítica aos a-estudantes que acreditavam que poderiam escapar e criar algo novo e que necessitariam apenas derrubar a universidade. O que eles não percebiam, destaca Grosrichard, é que a universidade diz respeito a um discurso, e não sendo apenas uma instituição.

Alain Grosrichard revela, então, que Lacan não se identifica com o lugar do professor, com a posição daquele que sabe e quer ser compreendido. Ele se posiciona como aquele que não compreende e não se reconhece em imagens ou conceitos especulares. Em seu lugar, Lacan propõe a importância de se lidar com aquilo que resiste. E esse conteúdo pode ser trabalhado de duas maneiras: ou não se entende nada e se sai do jogo; ou se deixa levar por algo que está além da relação imaginária, ou seja, para sair, é preciso entrar.

Grosrichard nos faz um convite para nós nos deixarmos levar e irmos além da compreensão, de modo que cada um coloque um pouco de si.

É este mesmo procedimento que ele nos apresenta na construção da sua leitura do seminário e põe muito de si, ao escolher os autores clássicos do Iluminismo.

Ele se faz acompanhar por: Jean-Jacques Rousseau, Diderot, Marques de Sade, Voltaire, Montesquieu etc. Os três primeiros são por ele considerados como parceiros constantes de um diálogo com o texto de Lacan. Os demais – Aristóteles, Sócrates e Rimbaud, dentre outros – torna-os companhias temporárias, parceiros para apenas alguns trechos do caminho.

Outro aspecto de destaque é que Grosrichard apresenta uma constante preocupação com os deslocamentos de diferentes lugares e tempos. Toma Vincennes como um lugar estratégico e identifica ali um presente mais ou menos imediato de uma universidade pautada em uma ampla tentativa de inovação. Mas não deixa de lado o seu passado histórico, ao ser um presídio e um zoológico: um presídio que abrigou o Marques de Sade e Diderot. Com seu zoológico, lembrando sempre da natureza animal dos seres humanos, ou seja, de suas inscrições de gozo, as quais interessaram profundamente a Lacan, em seu seminário.

Grosrichard extrai alguns desses aspectos da obra de Diderot, como em Carta aos Cegos destinada a aqueles que enxergam, na qual, assinala que, neste texto, para Lacan, os cegos somos nós. Nós e nossa cegueira desencadeada por nossas projeções imaginárias em tentativas de capturar o saber.

O Marques de Sade é outro personagem fundamental nesse processo, pois ficou 12 anos preso em Vincennes. Ali, escrevendo 120 dias de Sodoma, com o qual Lacan polemizará mais de perto.

E Grosrichard lembra que Vincennes traz também Jean-Jacques Rousseau, outro apaixonado por Diderot, que ia continuamente visitá-lo na prisão; tecendo, aos poucos, no caminho, algumas das idéias que nortearam a sua obra.

Alain Grosrichard analisa, em seguida, o Analyticon, no Seminário XVII. Ele revela que Lacan o construiu a partir do Satyricon, que fazia uma sátira dos costumes da época, na qual, a moral e os costumes eram questionados.

Contudo será em Sade que Lacan encontrará de maneira mais clara a importância do gozo. Em 120 dias de Sodoma, existem 600 maneiras de gozar, revelando, de maneira mais clara, uma verdadeira economia do gozo.

Há em Sade um ousar saber e esse saber se distingue de outro proposto pelas escolas e livros: trata-se de um saber no sentido de saborear, de experimentar e de ir às últimas consequências, revelando que ele tem uma face de gozo e que o saber é meio de gozo.

É na obra do Marques de Sade, Grosrichard revela que Lacan encontrou um personagem estratégico: Saint Fond, um libertino que se propõe a gozar de uma mulher até quase a sua morte. Ele atua como um sádico querendo ser o instrumento do gozo do Outro e chegando até a exigir que a mulher assine com sangue uma blasfêmia contra Deus. Para ele, nem a morte pode ser o limite do gozo. Trata-se de uma tentativa de eternizar o gozo.

Para Lacan, os discursos operam como máquinas gozantes, que tecem determinados laços sociais: o discurso do mestre, o discurso da universidade, o discurso da histérica e o discurso analítico.

Os discursos são compostos por quatro elementos estruturais: 1) o S1, como o significante de gozo, que traz as marcas daquilo que se crava no corpo do sujeito; 2) o S2, que diz respeito ao saber – no discurso da universidade, ele opera como o agente do processo; 3) o a, que ocupa o lugar de objeto causa do desejo, sendo o lugar por excelência do semblante; 4) o $, que se encontra associado ao sujeito cindido.

Para Grosrichard, o discurso do Mestre encontra-se associado à estrutura da subjetividade, do inconsciente e diz respeito ao gozo, pois o que interessa é essa verdade que se esconde atrás do S1. Trata-se do traço unário que marca o sujeito com uma barra, fazendo com que ele desapareça. Lacan associa o S1 à marca de gozo, tornando-o um puro ponto de enunciação.

O discurso universitário produz um sujeito cindido que se sente uma marionete nas mãos de um mestre que manipula as cordas.  O discurso histérico opera por meio de um agente – o $ – que sempre contesta o mestre e aparece como a base do movimento de Maio de 68.

E, finalmente, o discurso analítico, que visa à produção do S1 estreitamente articulado ao objeto a, como causa do desejo.

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