/“A prática lacaniana, sem standard mas não sem princípios”, sobre o IV Congresso da AMP

Enquadre Invisível e Princípios do Tratamento Hoje

P. Lasagna

1. O enquadre ou “setting”.
O enquadre é o que querem nos fazer acreditar, uma convenção, visível, evidente, fixada há um século e “contratual”? Ou ele é uma realidade efetiva mas invisível, um “setting” invisível?

Para a IPA, o enquadre visa a se igualar a um dispositivo experimental de tipo científico, cuja fixidez tornaria a experiência, senão previsível, ao menos “reprodutível”. A dificuldade intervém se o enquadre inclui necessariamente o psicanalista concebido como um sujeito “imprevisível”. A contra-transferência do psicanalista torna-se então o que o enquadre “fixo” permite fazer ex-sistir e também seu avesso.

A contra-transferência é o coração vivo da sessão fixa. No limite, ela constitui de fato o enquadre para os teóricos da IPA. O que implica “o inconsciente do analista” tornar-se o novo enquadre.

Para nós, não se deve partir da subjetividade do analista que não deve interferir em nada no processo do tratamento, mas sim de seu ato. Na verdade, esse ato é o que fornce o enquadre, o que o produz. Para retomar uma expressão do grupo que está trabalhando sobre o “setting”: “o enquadre lacaniano é um efeito e não uma condição de possibilidade da análise”. Se o ato é privilegiado, isso significa também que se vai partir do tempo, mais do que do espaço, para definir esse enquadre: De fato, o tempo fixo da sessão é uma concepção que tende a retirar do tempo sua especificidade temporal para fazer dele um “espaço”, seria o “analítico”.

Em contrapartida, o tempo tomado em sua efetividade, como tempo lógico, não existe nem como a priori, nem como convenção entre o paciente e o analista. Só o ato do analista é que introduz esse tempo lógico. Esse tempo descompleta a “unidade” do tempo e o aspecto necessário (ananké) que ele parece apresentar.

O tempo lógico supõe um analista no lugar de semblante de objeto, objeto a cuja própria natureza está ligada ao tempo. O manejo desse objeto constitui então a “política” do analista que é o verdadeiro nome do “enquadre invisível” do tratamento. Mas este enquadre não é fornecido nem pelo paciente, como o quer a corrente intersubjetivista, nem pela convenção, mas deve ser inventado por antecipação. Isso supõe que o analista parta do sintoma e guarde o que Freud designava como “uma dimensão antecipada” no que diz respeito ao analisante.

Essa liberdade do analista na definição prática dos elementos do enquadre, duração e ritmo das sessões, posiçào sentada ou “deitada”, supõe um certo número de deveres que se resumem no “tato” necessário à sua operação. Ele não deve “chocar mas dividir” de modo calculado o sujeito analisante, a fim de manter o trabalho e a abstinência necessária ao tratamento evocada por Freud. Essa abstinência não se limita à vida sexual, mas antes, segundo Freud, “a alguma coisa que se reporta à dinâmica da doença e da cura”.

Mas essa questão da abstinência levanta necessariamente a questão da satisfação substitutiva que o dispositivo analítico propicia ao sujeito. A análise também pode se tornar um sintoma que vem interrogar o enquadre escolhido pelo analista em toas as suas dimensões, tanto clínicas quanto política, e mesmo ética.

A ênfase posta nas “saídas do enquadre”, ou seja, as diversas modalidades de acting-out e de passagem ao ato, deixa obscuro o fato de que essas “saídas” marcam a falta do ato do lado do analista, o que é favorecido na perspectiva da IPA, por uma preocupação evidente de impelir para o campo do analisante a responsabilidade do ato. Para “situar” essa falta de ato, é preciso uma definição conveniente do ato analítico que permita apreciar as modalidades nas quais ele se apresenta na prática. A ênfase posta no passe significa que o que se deve examinar, de fato, é, em primeiro lugar o ato do analista, para interrogar, em seguida, as variantes permitidas por ele em cada tratamento. Essa perspectiva é a do procedimento clínico no qual a certeza é adquirida segundo a lógica do um por um e da série, o que exclui o pseudo-universal do para todos da ciência.

Esse procedimento está em oposição a uma fixidez dos parâmetros da ciência, contraditória com a própria manifestação do inconsciente. A falsa certeza da falta de liberdade do analista substitui, no enquadre do standard IPA, a certeza do ato. A posição lacaniana visa a maior liberdade do analista para dar lugar ao ato, único a engendrar a certeza. A certeza trazida pela psicanálise se diferencia então, verdadeiramente, da certeza trazida pela ciência.

Recentemente, a ênfase posta pela Escola na prática da psicanálise aplicada, permitiu levantar outras questões concernentes à prática, por exemplo, à prática em instituição.

Assim, se pode opor uma concepção do “enquadre” institucional que repousa inteiramente sobre a definição de nomes, de tempo e de lugar, mais ou menos fixos, justificando-os falsamente como da psicanálise. Esse reino da regra tem um avesso que, aqui também, reside em uma concepção na qual o enquadre é inteiramente constituído pelos sujeitos ou pelo “grupo” de pessoas trabalhando na instituição.

Essa prática oscila entre o culto minucioso da regra e o exame selvagem da contra-transferência de cada um, e de todos, provado pelos “psicanalistas” institucionais. Esses dois desvios se apagam se consideramos que toda formação institucional não é um enquadre, nem um conjunto de “sujeitos”, mas sim um sujeito que se trata de deslocar, de interpretar. Do mesmo modo, cada sujeito acolhido na instituição não deve se dobrar à “lei”, mas inventar o enquadre que será o seu, a partir de seu sintoma, com a ajuda dos que intervêm. Aqui também, o enquadre concebido como um dispositivo simbólico apaga e recobre o enquadre que decorre do ato, ainda que operado por “muitos”.

2. Atualidade dos princípios e princípios da prática atual.
Hoje, “a exigência de transparência” evidenciada pela corrente intersubjetiva e reclamada pelo cientificismo se associa a um questionamento de qualquer figura de autoridade. A autoridade não pode vir de uma prática simétrica da transferência ou do contrato, mas sim de uma autoridade autêntica, quer dizer, clínica, surgida da disparidade subjetiva da transferência. É evidente que essa autoridade não pode mais se apoiar nos títulos, e mesmo apenas no prestígio da psicanálise, mas certamente nos efeitos obtidos pelo psicanalista, ou seja, nas conseqüências de seu ato. Lacan já observava, há muito tempo, que a transferência era efeito de uma intervenção justa do analista, e a transferência negativa a resposta a seus erros. Ali onde se pensa que, pelo contrário, é o que permite qualquer intervenção, lamenta-se a lentidão de sua aparição.

A transparência da ação do analista supõe também que ela possa ser exposta com propiedade, em uma dimensão lógica. Isso exclui remeter os efeitos do tratamento aos mistérios opacos da contra-transferência que vêm revezar, na auto-acusação do praticante, o que outrora foi a “inanalizibilidade” do paciente.

As questões de Freud sobre as indicações da análise receberam, um século depois, inúmeras respostas. As psicoses, hoje, não são mais uma contra-indicação, mas sim uma prática cotidiana. A questão de saber se as psicoses necessitam de uma “adaptação” do enquadre, do objetivo ou da própria análise, encontrou respostas concretas. De Mélanie Klein a Lacan, não foi a psicanálise que se adaptou às psicoses, mas as psicoses que transformaram a prática e a doutrina analítica.

O último ensino de Lacan constitui, aqui, um ponto crucial para se avaliar em quê a clínica da psicose transformou os próprios princípios do tratamento.

Se a psicose permitiu a Lacan pôr em questão o Édipo freudiano, desde muito cedo, reduzindo-o à metáfora paterna, foi o tomar o sinthome e o sintoma como ponto de partida que permitiu a Lacan redefinir a clínica e os princípios da prática. Nessa nova perspectiva, o sintoma não é mais apenas uma “manifestação da estrutura clínica”, mas uma maneira de apreendê-la, percebê-la, manejá-la, deslocá-la. O significante definido a partir do sintoma se torna um modo de ordenar o gozo, para além de sua função de representar o sujeito. O tratamento se torna então a modalidade de um deslocamento do gozo do corpo pela operação do significante, que se endereça diretamente ao modo de gozar do sujeito.

Isso responde perfeitamente à clínica moderna dos “novos sintomas” e da psicose ordinária.

De fato, esses novos sintomas se apresentam sobretudo como uma prática, ou seja, o que o sujeito faz, muito mais do que o que ele é. A busca de identidade não é mais a preocupação contemporânea. A questão do sujeito torna-se, antes: como fazer com seu gozo? Como se virar com ele? O tratamento permite mostrar aos sujeitos que esse savoir faire “bruto” do sintoma pode desembocar em um “saber fazer com ele” (savoir y faire).

O vocabulário da clínica muda com o último ensino de Lacan e ainda não avaliamos em quê ele modifica os princípios do tratamento. Sua própria economia escapa à lógica do conceito, presente nos anos sessenta, para partir da lógica dos nós.

Desordenar a defesa, isolar o acontecimento de corpo, mostrar a trapalhada, o erro, o erro nas contas, a moedagem, são termos que não vêm simplesmente precisar a fenomenologia do tratamento, eles deslocam o enquadre freudiano que se estrutura entre recalque, desmentido e foraclusão, e se orienta pelo conceito e pela ciência. As “contra-indicações” do tratamento se tornam então surpresas, por vezes barrocas, que se opõem ao dogma da estrutura clínica, à força do eu ou às possibilidades da contra-transferência de um ou de outro.

Todas essas novas “contra-indicações”, em Lacan, se referem ao laço secreto da linguagem e do corpo, ao gozo da alíngua, cf. por exemplo o japonês, o inglês, o verdadeiro católico.

Mas as “contra-indicações” mais clássicas que dizem respeito ao gozo permanecem em referência, desta vez, à ética: a canalha, o rico, o débil.

Este último não sendo forçosamente aquele que sofre de um déficit, mas aquele que não sabe fazer com um saber enlaçado ao gozo do corpo, o que, para Lacan, é a condição humana universal. Para Freud, o “débil”,que não pode se beneficiar da análise é, antes, aquele que se pensa educado, entendam, que se imagina já “consciente”. A educabilidade necessária do analisante, diferente de sua educação, quer dizer apenas: o analisante é, na realidade, o sujeito suposto (não) saber que quer aprender do quê é feito seu gozo.

Ninguém duvida que um dos princípios maiores da psicanálise é o de pôr em questão a debilidade do analista. Não para estudar os rastros de sua contra-transferência, ou seja, sua paixão conservadora por uma teoria que não pode mais lhe permitir produzir os efeitos reais que fizeram e fazem ainda o sucesso da psicanálise, mas para que ele se defronte com a impossibilidade de atingir o real sem passar pelo significante e pelo imaginário que escava seu furo. Assim, talvez não seja o fim do divã que se deva anunciar, mas sim do analista que, acreditando autorizar-se a partir de Freud ou por si mesmo, não quer saber nada sobre alguns outros que, sabendo que o Outro não existe, fazem existir a psicanálise como a única empreitada humana verdadeiramente leiga nos dias de hoje.

Tradução: Vera Avellar Ribeiro