/De Miguel Reale Júnior, a “Rita”

Do livro “Dez Mulheres”, de Reale Jr.,lançado em 30 de março de 2004, texto oferecido pela Editora Best Seller:

RITA

Ela acreditava que o iria contrariar, pois Ivano veementemente já manifestara apenas desejar ter filhos passados dois anos de casados. Receosa, esperou que chegasse vitorioso do jogo de rúgbi para comunicar que desconfiava estar grávida, uma vez que havia passado quinze dias e não menstruara. Não podia esperar, todavia, que a reação fosse tão violenta como foi.
Aos gritos a acusou de haver sido ludibriado, de ter propositadamente deixado de tomar pílulas para engravidar e assim tentar ter as atenções voltadas para si. Podia tirar o cavalinho da chuva que não seria por isso tratada a pão-de-ló. Continuaria com seus compromissos de partidas de rúgbi e de jogo de malha até debaixo d’água. Só não a levava para fazer um aborto porque sua família, em especial sua mãe, era muito católica. Filho era golpe sujo. Ela bem sabia que a situação financeira estava broca. A fábrica passava por dificuldades e ela querendo arranjar um gasto enorme como esse. Ora, um filho era um custo perene, e o momento não estava para imprudências.

Rita chorou desbragadamente. Na manhã seguinte correu à farmácia para comprar um teste de gravidez, o que deveria ter feito antes. O resultado foi negativo. Ufa! Que sorte. Não queria mesmo ficar grávida do jeito que as coisas caminhavam, decepcionada que estava em tão pouco tempo com o casamento. Ivano, ao saber do teste negativo, apenas disse ter ficado claro o golpe. Ao não dar certo, agora a verdade aparecia. Com ele era assim, ela que aprendesse.

Ivano sempre fora gritalhão, sanguíneo no comportamento e na cor, descendente que era de ucranianos. Seus avós paternos e maternos chegaram ao Brasil logo após a Guerra, católicos fervorosos, com verdadeiro ódio aos comunistas. Sua mãe acreditava na santidade de João Paulo II antes mesmo de ele morrer. O pai, dono de uma fábrica de motores elétricos, levara o filho a estudar engenharia na Escola de Engenharia Mauá, onde viera a ser colega do irmão de Rita, por meio do qual dela se aproximara.

O irmão e Ivano formavam um grupo animado com os colegas de faculdade, e Rita passara a conviver com eles todos os finais de semana, fosse porque iam estudar em sua casa, fosse nas disputas de boliche ou de futebol de salão. De repente se viu torcendo sempre pelo time de Ivano, cuja espontaneidade e jeito de menino crescido, a precisar sempre de colo, a encantava. Caso perdesse no jogo, ficava inconsolado, quase chegando a chorar. Naquele corpanzil de um metro e oitenta e braços musculosos morava uma criança, e esse ar de órfão abandonado das estepes ucranianas a seduziu. Iria domá-lo, lapidar a pedra na qual residia um coração generoso.

Rita, ao contrário de Ivano, era delicada. Sua pele morena-clara lembrava porcelana. O nariz adunco saía de uma fronte aberta, a testa larga e os olhos castanhos grandes, lábios grossos. Alta, de um metro e setenta, tinha o corpo bem desenhado. Ao corpo correspondia o espírito. Formada em desenho industrial, amava as artes e plantas. Tivera uma grande chance e a abraçara ao ser contratada como desenhista de azulejos, trabalhando em uma loja no atendimento a clientes especiais, projetando azulejos na linha dos desenhos italianos e espanhóis. E ainda por cima a loja era próxima de seu apartamento, no Itaim-Bibi.

Já na lua-de-mel, no entanto, as dificuldades surgiram. A escolha da viagem foi um drama. Ivano não parava de lembrar a falta de dinheiro, tanto que iriam residir em um apartamento, no qual Rita já morava, de dois quartos na rua Itacema. Rita propunha que ficassem dez dias em Visconde de Mauá, assim iriam de carro, sem o custo do avião, e a natureza era deslumbrante, especialmente no mês de junho, prestes a começar o inverno. Ivano propunha irem a Miami, a passagem não era tão cara, e assim poderia comprar mais baratos equipamentos eletrônicos para a empresa. Prevaleceu a idéia de Ivano, e a lua-de-mel foi um entrar e sair de lojas e lojinhas em Miami. Voltaram estressados, é lógico.

Rita passara finais de semana com Ivano antes de casar, mas não convivera com ele. E no dia-a-dia a coisa mostrou-se diferente. Cedo Ivano saía para a fábrica em Diadema, na Grande São Paulo. Tinham um carro só, até porque no prédio, mais antigo, havia apenas uma vaga de garagem por apartamento. E como Rita trabalhava próximo de casa, ia a pé para a loja de azulejos. Era mesmo mais cômodo não ir de automóvel, pois nem sequer teria onde estacionar.

As dificuldades econômicas com a crise decorrente da recessão e a dominação de mercado por um grande fabricante deixavam Ivano tenso, mais tenso do que já era. Pensando em como seria bom jorrar sua agressividade na prática de esporte, a seu ver uma eficiente terapia, Rita sugeriu que passasse a jogar rúgbi, conforme sempre insistia um ex-colega de faculdade. Não imaginava que se transformaria em uma obsessão, pois de uma vez por semana passou a duas, e depois surgiram os jogos contra nos finais de semana, muitos em cidades do interior.

O jogo de rúgbi levou ao jogo de malha, do gosto de alguns do time de rúgbi. Assim, passados cinco meses de casamento, Ivano chegava dois ou três dias na semana tarde em casa. Chegar tarde não era nada. O pior era o cheiro de cerveja, de chope, que nunca o grupo deixava de tomar após os jogos de rúgbi ou durante o jogo de malha.

Apesar de todo o esporte, e de todos os encontrões próprios do rúgbi, a barriga cresceu e o nível de tensão não diminuiu. Era difícil surgir a criança grande que morava atrás daquele corpo avermelhado. O ar de coitado a precisar de uma esposa meio mãe meio mulher foi se desfazendo, e passou a predominar o sujeito gritão, de pouca brincadeira e muita exigência de ordem em casa, especialmente com relação às suas coisas e suas roupas, a querer submissão a seus comandos e irritações.

Nem tinha Rita o consolo de uma vida sexual compensatória, pois não suportava o cheiro quase diário de cevada macerada. E com o passar do tempo Ivano perdera o pudor. Na cama, que Rita procurava sempre cobrir com lençóis de linho e perfume de alfazema, lançava no meio da noite peidos e arrotos de horripilar um estivador. Que nojo!

Não deixavam de trepar, mas o charme de um envolvimento romântico deixara de existir com meio ano de casados. O que antes era um encontro amoroso transformara-se em embate de forças telúricas. Rita gostava de fazer sexo, mas sentia falta de carinho, de aconchego e de carícias.

Em janeiro comemorava-se o aniversário de Ivano e sete meses de casados. Rita procurou revestir a data de todo o romantismo, em uma tentativa de refazer o encanto, que nunca fora muito, mas agora totalmente perdido. Comprou de presente uma agenda eletrônica, mas o presente preparado com todo o cuidado foi mesmo o jantar. Pôs a toalha de linho, a louça Vista Alegre e os talheres de prata, presente de um tio no casamento. Especial foi o prato principal, retirado do livro de receitas de famosa chefe de cozinha, batatas gratinadas com ovas de salmão em um creme com alecrim. Escolheu o vinho, um Sauvignon Blanc da Nova Zelândia. Caprichou. No som, o Adágio de Albinoni.

Durante a entrada, endívias com queijo de cabra quente, Ivano foi até amoroso. Quando levou os pratos, para em seguida retirar as batatas do forno e colocar depois as ovas, Ivano foi à geladeira em busca de cerveja. Ao ver as batatas, logo indagou o que vinha por cima. Fez cara de nojo ao saber que eram ovas de salmão, afastou-as e levou à boca a batata, que festejou ter sido salva de uma mistura insuportável. A sobremesa, sorvete de creme com calda de maracujá e hortelã, estava azeda. Tudo tinha azedado.

A mania de ordem de Ivano aumentava a cada dia. O segundo quarto era escritório de ambos, mas ai de quem mexesse em suas coisas. A ordem era exemplar, dos lápis aos disquetes, dos livros da faculdade às pastas da empresa e revistas de rúgbi. Se um clipe estava fora de lugar, Deus nos livre. Parecia que Ivano precisava da ordem externa para compensar a desordem interna.

Por isso não queria nem pensar em filho. Imagine um bebê dentro de casa. Fraldas, bichos de borracha ou pelúcia no meio da sala, mamadeiras na cozinha. E o quarto? Deveria abrir mão do seu escritório? De maneira alguma.

Foi pouco depois do décimo mês de casamento que Rita desconfiara estar grávida. A reação violenta de Ivano a desconcertou ainda mais. A sorte foi ter havido alarme falso. As relações sexuais não mais ocorreram. Em um sábado, Ivano caiu doente, com gripe. Deixou de ir ao jogo de rúgbi, e a noite foi uma sinfonia interminável, roncos e silvos brotando do peito contaminado pela gripe, que se misturavam com arrotos e puns, tudo em código morse, uns curtos, outros longos.
No meio da noite, o doente quis trepar com Rita, que não fugiu de seus deveres conjugais, imaginando que depois desse esforço iria cair em profundo e sossegado sono. Durante a trepada, sentindo o azedume do suor de febre de Ivano, pensava como era possível que, a vinte dias de comemorar um ano de casamento, tudo tivesse ido para o brejo. Como fora possível?

Na terça-feira, em uma confeitaria perto da loja, ao ir em direção ao caixa para pagar, esbarrou em uma moça morena, de cabelos pretos curtinhos, mignon. Pediu desculpas, a moça sorriu, ela também, e saíram da confeitaria conversando. O olhar da moça era expressivo, vivo. Ela era bem bonita.

A moça perguntou se já não a vira anteriormente, pois tinha uma loja de jóias perto dali, na Couto de Magalhães. Rita contou que seu lugar de trabalho era próximo e que talvez já se tivessem cruzado. O papo, mesmo na calçada, rolou fácil, e Rita percebeu quantas afinidades tinha com Aysha, desenhista de jóias e dona da joalheria, que agora estava criando colares e pulseiras com sementes e caroços de frutas misturando-as com prata e ouro. Aysha convidou-a a um dia passar na joalheria. Trocaram telefones.

Na sexta-feira à noite Ivano iria jogar malha, e Rita lembrou-se de telefonar para Aysha. Combinou de passar na joalheria. Adorou as peças inovadoras de sementes e prata. Comprou uma pulseira linda. Os olhos de Aysha eram fortes, sugestivos, a cada palavra lançava um olhar envolvente. Comeram um lanche em um dos barzinhos do Itaim. Aysha contou da tradição de sua família libanesa no trato com jóias. Descobriram o gosto comum por plantas, flores, música clássica e literatura francesa.

Durante duas semanas encontraram-se pelo menos umas quatro vezes, e não faltou assunto, para a alegria de ambas. Sem dúvida, davam-se bem. No fim de semana em que Rita comemoraria um ano de casada, Ivano avisou que deveria ir a Botucatu participar de uma competição de rúgbi. Rita lembrou-se do aniversário de casamento, mas nada disse, deu até graças a Deus. Aysha convidou-a para ir sábado ao sítio de sua família, em São Roque.

No sítio só estavam as duas. No sábado, ao meio-dia, o sol estava forte, apesar de ser quase inverno. Aysha propôs que fossem tomar um banho no riacho existente na divisa do sítio. O dia estava quente, mas a água estava fria. Aos poucos e aos gritos foram entrando na água. Por sugestão de Aysha, como não havia ninguém, tiraram a parte de cima do biquíni. Deitadas sobre as pedras do fundo do riacho, a água fria corria pelo corpo. Ao mesmo tempo gritaram:”Fora demônios”. Riram da coincidência.

A mão de Rita, com a correnteza, desprendeu-se da pedra lisa do fundo do riacho, seu corpo rolou sobre o de Aysha, os bicos dos seios roçaram um no outro, e houve um frenesi, foi choque elétrico. Apenas se olharam e sorriram. Saíram do riacho e correram para tomar uma ducha quente.

Rita estava no banho, com xampu no rosto, escorrendo dos cabelos castanhos, quando Aysha entrou no chuveiro e começou a alisar o corpo da amiga. Na ponta dos pés pôs bico de seio contra bico de seio. A água escorria entre as duas, as línguas se encontraram, as mãos corriam pelos corpos e passavam pelas cavidades sensíveis. Depois de se enxugarem e de se untarem de creme hidratante, abraçaram-se loucamente e foram para a cama. Rita passou a noite de comemoração de um ano de casada com as pernas enlaçadas em Aysha.

Rita chegou a São Paulo com os olhos brilhando. Nem se importou com os resmungos de Ivano, que perdera o jogo em Botucatu. O casamento era mesmo maus humores de dia, maus odores de noite. E afastou definitivamente Ivano em suas raras invectivas sexuais.

Passara-se mais de quarenta dias da última menstruação, faziam quinze dias da trepada azeda com Ivano gripado, e Rita começou a se preocupar. Deveria ser atraso, fruto do estado emocional conturbado. Não era nada, nem precisava ir ao médico ginecologista. Por via das dúvidas fez o teste de gravidez da farmácia. Deu positivo. Estava grávida. Foi um deus-nos-acuda.

Tomada de paixão por Aysha, foi tomada de desespero. Estava grávida daquele traste de marido. E agora? O que seria dela e de ambas, de Aysha e dela? A vida era mesmo madrasta; quando encontrava a felicidade e o êxtase, surgia a gravidez indesejada de um indesejável. O filho causaria ainda maior atrito com a besta do Ivano, mas a ligaria perenemente a ele e a sua família. A sogra católica não permitiria uma separação com o bebê na barriga ou recém-nascido. O que fazer?
Aysha quase caiu de quatro ao saber da novidade. Sugeriu que se separasse, que fosse morar com ela. O bebê seria delas duas. Rita lembrou que Ivano não a deixaria em paz. E se fossem morar juntas, Ivano retiraria a guarda por estar tendo uma relação lésbica. Era o que o pai dela, quando ainda criança, chamava de sinuca de bico.

Estava grávida de um mês e pouco. Vivera os quinze dias mais felizes de sua vida até se descobrir grávida. O desespero substituiu o entusiasmo e a alegria de viver. O único consolo era o corpo e o carinho de Aysha. Até Ivano sentiu sua mudança de atitude, vítima de tensão inusitada. Jamais vira a mulher assim agitada, que não parava quieta em lugar nenhum, com as mãos tremendo.

Passado quase um mês, retornou um fim de semana ao sítio em São Roque. Só a natureza a acalmou um pouco. E os beijos gostosos e as mãos quentes de Aysha. Mas os fantasmas de Ivano e de sua família, em especial da mãe, que seria uma avó grudenta, a tiravam do sério. Muitas vezes chorava.

Em um domingo, já com quase dois meses e meio de gravidez, resolveu acompanhar os pais à chácara que possuíam em Guararema, onde passara os finais de semana de sua infância. A mãe observava a filha amuada e chegou a dizer:

— Minha filha, vejo que seu casamento não vai indo nada bem. Pense bem. Separe-se enquanto é tempo. Você terá o nosso apoio.
— Está bem, mãe. Obrigada. Eu estou mesmo muito pensativa.

No sítio, foi a um caramanchão, no qual desde menina punha-se meditativa. E olhando as bromélias incrustadas nas árvores e as flores-do-campo, fez o pensamento voar. Saiu de lá aliviada. Na volta para São Paulo já sorria e conversou mais com os pais.

Ao chegar em casa já eram quase oito da noite, pois o trânsito, mesmo no domingo, na marginal do Tietê estava bravo. Entrou no banho e pediu a Ivano para irem comer algo em um restaurante da Pedroso Alvarenga. Pôs uma roupa gostosa para o friozinho que fazia.

No restaurante, pediu uma taça de vinho tinto, só tinha chileno, mas tudo bem. Ivano pediu uma cerveja, como sempre.

Até o final do prato principal apenas contou as novidades do sítio dos pais, a morte do cavalo Piloto, a horta que não prosperava. Chegada a sobremesa, Rita olhou bem para o marido e disse:

— Tenho duas coisas para lhe falar. Uma péssima, outra boa. Vou começar pela péssima:
— Estou grávida.
— Não é possível, mas nós não trepamos faz tempo. É outro golpe.
— Não é golpe. É verdade.
— Como verdade?
— Eu fiz o teste. Estou grávida. E agora a notícia boa: o filho não é seu. Estou grávida de mês e meio.
— Sua vadia.

Em quinze dias estavam judicialmente separados.

Cerca de seis meses depois, nasceu uma linda menina, morena-clara, de cabelos castanhos, a cara da mãe.