/UM ENCONTRO EM TERRA DOIS

Hebe Rios do Carmo

 

Terra Dois não é apenas uma metáfora que nos ajuda a interpretar a pós-modernidade.    É também, a partir da pesquisa desenvolvida no mestrado de Linguagens, Mídia e Arte (Puc Campinas), a geografia que localiza no real de Lacan a resposta para o problema original de minha pesquisa sobre a poética no universo da objetividade. O objetivo da proposta de projeto, apresentada para o ingresso no mestrado interdisciplinar, em 2017, era investigar porquê e como a linguagem poética ou artística pode, muitas vezes, comunicar mais e melhor do que a linguagem objetiva, meta nem sempre atingida, mas ainda assim uma meta, das narrativas jornalísticas.

A intenção da pesquisa veio da experiência de trabalho durante 24 anos em uma emissora de televisão, como jornalista responsável pela elaboração de crônicas para exibição nos telejornais em datas comemorativas. Me indagava o fato de logo após sua exibição, a crônica ser lembrada ou comentada por muitos telespectadores ou colegas. Em vários momentos esses comentários eram mais frequentes até mesmo do que os comentários sobre as notícias exibidas ao longo de 40 minutos de telejornal. Seria aquela narrativa uma síntese mais fácil de promover a apreensão da notícia? Seria uma forma de comunicação mais eficaz ao mobilizar a sensibilidade por meio da criatividade? Seria apenas a reação natural a algo que não é comum no telejornalismo diário? Essas questões me levaram a investigar quais são as nuances e intercessões entre a linguagem poética ou literária (com perdão da pretensão) e as demais linguagens presentes no universo da informação e da comunicação televisiva.

O primeiro objeto de estudo proposto para a pesquisa foi a série de reportagens “Carnaval no céu”, do repórter Marcos Uchoa, exibida pela Rede Globo em 2008. O repórter desenvolveu uma narrativa de texto e imagem imbricada à poesia dos sambas e à vida de seus compositores, que aliada à edição produziu, a meu ver, uma obra de arte em termos de narrativa jornalística.

A pesquisa iniciada no mestrado e meu orientador me levaram, porém, a investigar um outro objeto. Tocado pelas palavras de sua tia Tereza, uma senhora de Porto Ferreira, interior de São Paulo, meu orientador Carlos Alberto Zanotti sugeriu que eu saísse do céu para descobrir na Terra um novo planeta a explorar. Depois de assistir a um dos episódios do programa Terra Dois na TV Cultura- SP, tia Tereza expressou a  compreensão que passou a ter da “tal pós-modernidade”. Estava então lançada mais uma contribuição para a pesquisa. Por que e como um assunto tão complexo pode ser melhor compreendido, a partir das narrativas e linguagens mobilizadas pelo programa? O que ele tinha de especial? O resultado de dois anos de pesquisa sobre essa característica “especial” foi apresentado a um dos grupos de membros do Instituto da Psicanálise Lacaniana, no último 16 de abril.

A rota percorrida em busca de Terra Dois, como objeto de pesquisa, permitiu que chegássemos a lugares de investigação nunca antes explorados por quem estava longe da academia e recém apartada do cotidiano frenético da redação de um telejornal diário. Seria necessário navegar pelos oceanos da psicanálise e da dramaturgia para aportar em Terra Dois, sendo que o barco que nos levava até então tinha seguido apenas pelos mares da comunicação. Foi ela, então, nosso porto de partida. Meu orientador me apresentou o sociólogo alemão Nicklas Luhmann e sua abordagem da comunicação como operadora central dos sistemas sociais (LUHMANN, 2005).

A partir do livro A realidade dos meios de comunicação (LUHMANN, 2005) entendi que a comunicação opera e organiza as comunicações internas dos vários sistemas e subsistemas existentes na sociedade, como o científico, o jurídico e o econômico, por exemplo. Sempre que cada um deles produz o que o autor chama de “irritação”, ou seja, suas informações de relevância, a comunicação dos meios organiza e opera esse conteúdo para que seja veiculado na mídia a partir de três áreas da programação: notícias e reportagens, entretenimento e publicidade. Como um produto de comunicação televisiva, passamos a investigar o programa Terra Dois no contexto da operação e organização de informações científicas de viés lacaniano, a partir do perfil de seu principal interlocutor, Dr. Jorge Forbes.

De que forma, porém, é feita esta operação, ou organização? Esta pergunta nos levou a novas investigações, que apontaram para a rota das narrativas. Foi então que a pesquisa ganhou a grande contribuição dos estudos sobre comunicação narrativa, realizados pelo jornalista e pesquisador Luiz Gonzaga Motta, por meio da obra Análise Crítica da Narrativa (MOTTA, 2013). Motta, por sua vez, nos apresentou as contribuições da pesquisadora Vera França (2004), que busca nos campos da mediação e da representação os eixos de articulação da comunicação narrativa.

A partir da relação estabelecida por Motta entre esses eixos (mediação e representação), presentes na narrativa jornalística, foi possível identificar uma correlação com as narrativas identificadas em Terra Dois, mesmo não sendo ele um programa de caráter informativo apenas. Com o devido aval dado por Motta (2013) para a aplicação do método de análise pragmática da narrativa na pesquisa de todo e qualquer objeto do campo da comunicação narrativa, não apenas a jornalística, iniciamos o balizamento e a identificação das vozes narrativas de Terra Dois e demais elementos necessários a esta aplicação.

A pesquisa a partir desse ponto nos revelou as vozes narrativas do campo da mediação presentes na entrevista realizada entre Dr. Forbes e a atriz Maria Fernanda Cândido e as vozes narrativas do campo da representação presentes nos ensaios e na dramaturgia de cada episódio. O primeiro deles, Sinfonia sem fim foi o corpus escolhido, por ser o episódio inaugural da série. A articulação entre narrativas e linguagens, observada neste episódio, nos aproximou do conceito mimese mediada, também criado por Motta (2013). Terra Dois não seria portanto, apenas fruto de uma mediação ou de uma representação, mas de um processo de articulação entre vozes narrativas, produzindo uma hibridização entre informação e entretenimento, ou seja, entre entrevista e teledramaturgia, para midiatização de um saber científico, a psicanálise.

Para explicar o viés de informação científica abarcado pelo programa, foi preciso recorrer à visão sobre psicanálise apresentada em Terra Dois por meio de seu idealizador, Dr. Forbes. A partir de entrevistas realizadas entre dezembro de 2017 e fevereiro de 2018 ele compôs, junto aos membros da equipe da TV Cultura – SP responsáveis pelo programa, uma essencial fonte de pesquisa e informação, devidamente transcrita na dissertação.

Começava então a pesquisa sobre o universo da psicanálise lacaniana, que não só revelou o conteúdo midiatizado pelo programa, como deu pistas sobre uma possível resposta às indagações originais da pesquisa, com relação à linguagem poética, artística ou mimética. A leitura do livro Da palavra ao gesto do analista (FORBES, 1999) nos permitiu a associação entre o gesto do ator (aqui compreendido como ato mimético ou poético) e a narrativa do inconsciente presente na linguagem. Passamos então a compreender a psicanálise como a ciência da linguagem habitada pelo sujeito (DUNKER, 2018). Mas que sujeito? O sujeito da linguagem. Mas que linguagem? No caso de Terra Dois, a linguagem dramática e mimética que também permeava o episódio. Seria a linguagem poética ou o ato mimético uma forma de expressão do inconsciente?

Depois de muita leitura e reflexão, a pesquisa encontra a resposta no real de Lacan. O real, ou aquilo que é a verdade mas não se vê, é possível representar, como consta nas considerações finais da dissertação Terra Dois, uma mimese mediada: pós-modernidade e psicanálise em narrativas para a TV Cultura – SP, em que é descrito o processo de mimese mediada no terceiro e último bloco do episódio Sinfonia sem fim:

 

 “O psicanalista atuaria no campo além da palavra, onde o desejo do sujeito se manifesta; o ator iria além da verdade, onde o desejo do sujeito é representado. A verdade de um sentimento ou sensação poderia estar, por isso, na aparência, na representação, na atuação dramática. No caso de Terra Dois, o psicanalista revela seu gesto por meio das vozes do campo da mediação que compõem sua prática como ex-aluno e discípulo de Jacques Lacan. Enquanto o gesto de analista realça a mediação da psicanálise, o gesto da interlocutora e os ensaios da dramaturgia realçam o campo da representação. Identificamos, portanto, neste bloco, o ápice da mimese mediada, em que os gêneros entrevista e dramaturgia se hibridizam na intercessão de suas vozes narrativas” (CARMO, 2018, p.114).

A linguagem poética, literária, mimética pode, portanto, expressar aquilo que é de difícil tradução por meio de uma linguagem essencialmente objetiva. Ela diz aquilo que não se vê, não se toca, mas existe. Pode, por isso, comunicar mais e melhor.

Foi com muita satisfação e gratidão pela generosidade e oportunidade oferecida por Dr. Forbes e toda equipe da TV Cultura – SP, que parte do resultado da pesquisa sobre Terra Dois foi apresentada à equipe do IPLA. O privilégio do encontro, com quem estuda Lacan e a psicanálise a fundo, foi marcado por muita emoção e empatia. Ficou também a certeza de que navegar, assim como pesquisar, é preciso, mas viver nunca será.

 

Hebe Rios do Carmo – Mestre em Linguagens, Mídia e Arte, especialista em Mídias Digitais, graduada em Comunicação Social e História.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FORBES, Jorge. Da palavra ao gesto do analista. Texto estabelecido por Maria Margareth Ferraz de Oliveira. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

FRANÇA, Vera Regina Veiga. Representações, mediações e práticas comunicativas. In:

PEREIRA, M. et al. Comunicação, representação e práticas sociais. Rio de Janeiro, Ed.

PUC Rio, 2004.

LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. 2. ed. Tradução: Ciro

Marcondes Filho. São Paulo: Paulus, 2005.

MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise crítica da narrativa. Brasília, DF: Editora UnB, 2013.

POR QUE Lacan? [S. l.: s. n.], 2017. 1 vídeo (7:17 min). Publicado pelo canal Casa do Saber. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=w-8xWZbmLbU. Acesso em: 10 out. 2018.

CARMO, Hebe Rios do. Terra dois, uma mimese mediada: pós-modernidade e psicanálise em narrativas para a TV Cultura – SP/ Hebe Rios do Carmo – Campinas: PUC-Campinas, 2018.